Concordo inteiramente com Cáceres Monteiro, que, na sua coluna na Visão de quinta-feira defende a actuação do Bastonário da Ordem dos Advogados, José Miguel Júdice, ao longo dos já vários capítulos que leva a «novela» Casa Pia. Por mais do que uma vez o bastonário foi politicamente inconveniente, mas a verdade é tomou posições corajosas e colocou na agenda questões que devem ser seriamente debatidas, como a das escutas telefónicas e a do controlo do Procurador Geral sobre a sua instituição no que concerne às fugas ao segredo de Justiça.
O facto de uma afirmação como o «estou-me cagando para o segredo de justiça» se ter tornado pública tem obviamente consequências políticas e delas de pode deduzir que o seu surgimento tenha também intenções políticas. Mas o problema nasce ainda mais cedo, quando uma pessoa que não é arguido ou testemunha num processo é escutada e quando uma frase cuja conexão com o caso em concreto é tão distante acaba gravada. É discutível que Ferro Rodrigues devesse ter sido escutado no âmbito deste processo. Mas, aceitando que o fosse devido ao facto de ser interlocutor de um dos suspeitos, é inadmissível que os seus comentários genéricos acerca do segredo de justiça seja gravados no âmbito de um processo de pedofilia. Mesmo que essas declarações pudessem fazer supor uma ilegalidade – violação do segredo de justiça – esse seria um outro processo completamente diferente em relação ao qual Ferro Rodrigues teria que ser constituído suspeito antes de ser escutado, o que aparentemente não foi o caso.
Antes de tudo o mais, portanto, há aqui o registo de uma conversa privada de alguém que não devia ter sido registada e que, se porventura fosse escutada no âmbito do processo de Paulo Pedroso, devia imediatamente ter sido apagada. O facto de não o ter sido foi o pecado original do qual derivaram todos os que se lhe sucederam.
Ora, neste ponto da «história», estamos num circuito perfeitamente fechado, inteiramente controlado pelos investigadores e sem agentes externos não autorizados. É portanto inelutável a responsabilidade que quem chefia a investigação e, em ultima análise de quem a superintende – ou seja, o Procurador Geral – no facto de ter existido a gravação de uma declaração que não devia ter sido registada. Se tal não tivesse acontecido, o «caso» das escutas telefónicas nunca teria acontecido.
Depois, como se sabe, essas declarações polémicas apareceram na comunicação social descontextualizadas. Ou, melhor ainda, recontextualizadas para terem um sentido diferente do original. O que significa que saíram do meio fechado da investigação para o meio aberto dos media. Neste passo, o Procurador pode argumentar que não podemos saber em que circunstâncias isso aconteceu e portanto não é possível apurar culpados e responsáveis. Tem razão. Mas é de todo improvável que essa divulgação não tenha tido a intenção ou pelo menos o conhecimento de alguém ligado à investigação. Claro que os meios de comunicação também devem ser criticados pela divulgação de matérias que sabem ser objecto de segredo de justiça – senão mesmo de reserva de privacidade – mas essa critica não isenta de criticas ainda mais sérias quem, do lado da investigação, forneceu tais escutas aos media. E esse lado, o da investigação, tem mais uma vez como responsável máximo o Procurador Geral da República.
Em suma, no acto de divulgação das escutas telefónicas ao Dr. Ferro Rodrigues, o PGR é provavelmente responsável. No acto de registo dessas escutas – manifestamente desligadas do caso concreto de pedofilia – o PGR é inegavelmente responsável. Uma consequência da conjugação das duas falhas podia ser o pedido de demissão do próprio, que não tenho duvidas que tenha chegado a estar nas cogitações dos actores deste processo. Como cidadão não peço a cabeça do procurador, mas também aceitaria como lógico um pedido de demissão do próprio, embora ainda lhe reste alguma margem de manobra. Quanto às posições do bastonário da Ordem dos Advogados, parece-me mais vantajoso, para todos os agentes do sector judicial e sobretudo para o próprio país, ter nele uma voz frontal e politicamente incorrecta do que um mero defensor de posições corporativas, como os bastonários tendem quase sempre a ser. Não sei se o voluntarismo de Júdice serve um programa de projecção política pessoal ou não. Mas não tenho dúvidas de que serve a clarificação das questões da justiça em Portugal.
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