quinta-feira, setembro 30, 2004

Professores sem ética?

No quadro de um sistema de colocação de professores que tão depressa pode colocar um docente ao lado de casa como a centenas de quilómetros de distância, é previsível que cada um dos interessados faça o que estiver ao seu alcance para ficar perto de casa e evitar a desregulação - que, recorde-se, nalguns casos é anual - da sua vida quotidiana e familar. Quem, posto perante a imprevisibilidade e irracionalidade da situação, não recorreria a atestados médicos que atire a primeira pedra.
Mas um professor é um educador. É, em muitos casos, um modelo de comportamento para as nossas crianças e os nossos jovens, juntamente com os pais ou a família, nalgumas vezes mesmo, infelizmente, em vez dos pais ou da família.
Claro que a ética e a verticalidade são atributos individuais que compete a cada um de nós cultivar e que só se expressam perante o seu contrário. Só podemos assumir um comprtamento ético perante a tentação de um comprtamernto não conforme com a ética. Por isso, a cada um dos professores que apresentou atestados médicos falsos para conseguir influenciar a colocação pode ser imputado um comportamento censurável. Mas mal da sociedade que coloca os seus professores perante este dilema. Mais ainda num quadro geral em que, em muitas outra áreas da nossa vida colectiva, não é apontado o dedo àquele que "se safa" mas sim àquele que, em nome de valores vagos, não "aproveita" os "recursos" ao seu alcance. Para muitos professores - e facilmente se percebe que também para a população em geral - um professor que consegue um atestado para ficar colocado junto de família faz aquilo que é "normal"; um professor que se recusa a fazê-lo mesmo tendo essa possibilidade porque "não é correcto" passa por imbecil. Está assim o estado moral da nação...

Há sistema informátco que resista?

Não disponho de toda a informação nesta matéria, mas nas entrelinhas do falhanço do primeiro sistema informático de colocação de professores e das explicações esquematicamente detalhadas do autor do segundo, deu para perceber a extrema complexidade do processo. A verdade é que, entre concessões aos sindicatos, compensações ou maneiras de minimizar o "desterro" de professores e diversos factores de "priorização" das candidaturas, estamos perante um processo de colocação que se vê obrigado a ter em conta numerosos critérios alternativos ou mesmo conflituantes. E isso em resultado de ser um processo centralizado e não focalizado nas escolhas ou nas comunidades educativas. A complexidade do processo de colocação de professores, que pôs KO um sistema informático e deu luta a outro, resulta, na origem, do centralismo de todo o processo. Tudo o resto são consequências deste defeito original. E todos os elementos que tornam o sistema complexo resultam de medidas metidas dentro do sistema com a a intenção de corrigir essa consequências.

Como colocar professores

No pico da polémica acerca da colocação de professores recordo-me de ter ouvido uma reportagem, julgo que na TSF, que, bem a propósito, fazia a ronda pelo método de colocação de professores em vários países europeus. Em quase todos eles o processo não era centralizado mas sim regional, estando a distribuição dos professores pelas escolas a cargo de cada um dos executivos regionais. E, obviamente, em todos os casos o processo tinha decorrido com toda a normalidade e as aulas iniciaram-se na mesma data de sempre, nalguns casos início de Setembro. Ou seja: à primeira vista a regionalização pareceria fazer falta por aqui. Mas a verdade é que na mesmo reportagem também se dizia que nalgumas regiões alemães, o quantitativo populacional era muito superior ao português e o número de professores a colocar também. E nem por isso houve erros ou atrasos. O que quer dizer que o problema pode ser outro. Na verdade parece-me que o problemas é uma combinação dos dois: a conhecida tendência centralizadorado poder político nacional, combinada com uma atávica displicência com que em Portugal se fazem muitas coisas.

quarta-feira, setembro 29, 2004

Eu quero um referendo!!!

A maioria dos portugueses pronunciou-se (mais uma vez) a favor de um novo referendo sobre o aborto no barómetro TSF/DN. Provavelmente alguém telefonou para casa dos inquiridos e lhes perguntou se gostariam de ser ouvidos. Ao que uma larga maioria obviamente respondeu que sim. Nada mais simples. Resta saber se a mesma maioria está na disposição de prescindir de um dia de praia ou de andar 500m a pé para ir votar num referendo... Estou em crer que a este número temos que tirar pelo menos 20 por cento. É este o povo que somos: prontos a dizer que sim mas menos dispostos a fazer algo.

sexta-feira, setembro 24, 2004

Manifesto

“Mas esta publicação de poeta para poeta não me tenta, não me incita, não me anima senão a emboscar-me na natureza, perante uma rocha e uma onda, longe das editoras, do papel impresso… A poesia perdeu o seu vínculo com o leitor distante… Tem de o recuperar… Tem de caminhar na escuridão e encontrar-se com o coração do homem, com os olhos da mulher, com os desconhecidos das ruas, daqueles que a certa hora crepuscular ou plena noite estrelada carecem nem que seja de um único verso… Tal visita ao imprevisto vale todo o caminho andado, tudo o que se leu, tudo o que se aprendeu… É preciso perdermo-nos entre os que não conhecemos para que de súbito recolham o que é nosso na rua, na areia, nas folhas caídas durante mil anos no mesmo bosque… e tomem ternamente esse objecto que nós criamos… Só então seremos verdadeiramente poetas… Nesse objecto viverá a poesia…”

“Outros medem a pauta dos meus versos, provando que os divido em pequenos fragmentos ou os estico demasiado. Não tem nenhuma importância. Quem determina que os versos sejam mais curtos ou mais compridos, mais delgados ou mais gordos, mais amarelos ou mais vermelhos? O poeta que os escreve. Determina-o com a sua respiração e o seu sangue, com a sua sabedoria e a sua ignorância, porque tudo isso entra no pão da poesia.
O poeta que não seja realista está morto. Mas o poeta que seja só realista está morto também. O poeta que seja apenas irracionalista só será compreendido por si mesmo e pela sua amada, o que é bastante triste. O poeta que seja só um racionalista será compreendido até pelos asnos, o que é sumamente triste. Para tais equações não há cifras na pauta, não há ingrediente decretados por Deus, nem pelo Diabo. Pelo contrário: estas duas personagens importantíssimas mantêm uma luta constante dentro da poesia, e nesta batalha ou vence uma ou vence a outra. Mas a poesia é que não pode ficar derrotada.”

“Coube-me sofrer e lutar, amar e cantar. Tocaram-me na partilha do mundo o triunfo e a derrota, provei o gosto do pão e do sangue. Que mais quer um poeta? Todas as alternativas, do pranto até aos beijos, da solidão até ao povo, estão vivas na minha poesia, reagem nela, porque vivi para a minha poesia e porque a poesia sustentou as minhas lutas. E se muitos prémios alcancei, prémios fugazes como borboletas de pólen evasivo, alcancei um prémio maior, um prémio que muitos desdenham mas que, na realidade, é para muitos inatingível. Consegui chegar, através de uma dura lição de estética e rebusca, através dos labirintos da palavra escrita, à altura de poeta do meu povo. O mau prémio maior é esse – não os livros e os poemas traduzidos, não os livros escritos para descreverem ou dissecarem as palavras dos meus livros. O prémio foi aquele momento fundamental da minha vida, no fundo do vale de Lota, ao sol pleno da nitreira abrasada, quando um homem subiu da cova aberta na escarpa como se emergisse do Inferno, com a cara alterada pelo trabalho esmagador, os olhos avermelhados pela poeira, e, estendendo-me a mão calejada, uma mão com o mapa da pampa nas suas durezas e nas suas rugas, me disse, de olhos brilhantes: «Conhecia-te desde há muito tempo, irmão». São estes os louros da minha poesia – esse buraco na pampa terrível do qual sai um operário a quem o vento e a noite e as estrelas do Chile lhe disseram muitas vezes: «Não estás sozinho; há um poeta que pensa nas tuas dores».
Entrei para o Partido Comunista do Chile em 15 de Julho de 1945.”


Pablo Neruda, Confesso que vivi