sexta-feira, setembro 24, 2004

Manifesto

“Mas esta publicação de poeta para poeta não me tenta, não me incita, não me anima senão a emboscar-me na natureza, perante uma rocha e uma onda, longe das editoras, do papel impresso… A poesia perdeu o seu vínculo com o leitor distante… Tem de o recuperar… Tem de caminhar na escuridão e encontrar-se com o coração do homem, com os olhos da mulher, com os desconhecidos das ruas, daqueles que a certa hora crepuscular ou plena noite estrelada carecem nem que seja de um único verso… Tal visita ao imprevisto vale todo o caminho andado, tudo o que se leu, tudo o que se aprendeu… É preciso perdermo-nos entre os que não conhecemos para que de súbito recolham o que é nosso na rua, na areia, nas folhas caídas durante mil anos no mesmo bosque… e tomem ternamente esse objecto que nós criamos… Só então seremos verdadeiramente poetas… Nesse objecto viverá a poesia…”

“Outros medem a pauta dos meus versos, provando que os divido em pequenos fragmentos ou os estico demasiado. Não tem nenhuma importância. Quem determina que os versos sejam mais curtos ou mais compridos, mais delgados ou mais gordos, mais amarelos ou mais vermelhos? O poeta que os escreve. Determina-o com a sua respiração e o seu sangue, com a sua sabedoria e a sua ignorância, porque tudo isso entra no pão da poesia.
O poeta que não seja realista está morto. Mas o poeta que seja só realista está morto também. O poeta que seja apenas irracionalista só será compreendido por si mesmo e pela sua amada, o que é bastante triste. O poeta que seja só um racionalista será compreendido até pelos asnos, o que é sumamente triste. Para tais equações não há cifras na pauta, não há ingrediente decretados por Deus, nem pelo Diabo. Pelo contrário: estas duas personagens importantíssimas mantêm uma luta constante dentro da poesia, e nesta batalha ou vence uma ou vence a outra. Mas a poesia é que não pode ficar derrotada.”

“Coube-me sofrer e lutar, amar e cantar. Tocaram-me na partilha do mundo o triunfo e a derrota, provei o gosto do pão e do sangue. Que mais quer um poeta? Todas as alternativas, do pranto até aos beijos, da solidão até ao povo, estão vivas na minha poesia, reagem nela, porque vivi para a minha poesia e porque a poesia sustentou as minhas lutas. E se muitos prémios alcancei, prémios fugazes como borboletas de pólen evasivo, alcancei um prémio maior, um prémio que muitos desdenham mas que, na realidade, é para muitos inatingível. Consegui chegar, através de uma dura lição de estética e rebusca, através dos labirintos da palavra escrita, à altura de poeta do meu povo. O mau prémio maior é esse – não os livros e os poemas traduzidos, não os livros escritos para descreverem ou dissecarem as palavras dos meus livros. O prémio foi aquele momento fundamental da minha vida, no fundo do vale de Lota, ao sol pleno da nitreira abrasada, quando um homem subiu da cova aberta na escarpa como se emergisse do Inferno, com a cara alterada pelo trabalho esmagador, os olhos avermelhados pela poeira, e, estendendo-me a mão calejada, uma mão com o mapa da pampa nas suas durezas e nas suas rugas, me disse, de olhos brilhantes: «Conhecia-te desde há muito tempo, irmão». São estes os louros da minha poesia – esse buraco na pampa terrível do qual sai um operário a quem o vento e a noite e as estrelas do Chile lhe disseram muitas vezes: «Não estás sozinho; há um poeta que pensa nas tuas dores».
Entrei para o Partido Comunista do Chile em 15 de Julho de 1945.”


Pablo Neruda, Confesso que vivi

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