Fica como uma ironia histórica que o resultado indirecto dos atentados de Madrid tenha sido exactamente aquele que os terroristas mais desejavam: a queda do governo que apoiou Bush na intervenção no Iraque. Indirecto porque não corresponde a uma demissão em resultado do acontecimento mas de uma derrota eleitoral mediada pelo voto popular. E aqui reside o centro da questão e aquilo que ela tem de mais profundo e inquietante.
É evidente que ficou muito mal ao governo espanhol o afã com que tentou atribuir à ETA a autoria dos atentados, tanto internamente como, ainda mais grave, junto dos governos estrangeiros seus aliados. Essa é uma atitude que ainda vai fazer correr alguma tinta e merece uma reflexão própria.
Mas é um erro de perspectiva atribuir à mistificação do governo espanhol a reacção do eleitorado nas urnas. É evidente que a maior parte do povo espanhol sentiu que estava a ser enganado e uma boa parte terá reagido mal a isso. Mas não nos devemos esquecer também que o povo espanhol tinha sido, antes de qualquer mistificação, ferozmente contra a intervenção espanhola no Iraque. E esse é o caldo social ideal para que um atentado tenha os efeitos políticos que este teve. Se não tivesse havido atentado o PP teria sido reeleito - até porque existe quase unanimidade quanto aos resultados positivos dos seus oito anos de governação – porque as manifestações anti-guerra estavam demasiado distantes no tempo e o teatro de operações demasiado distante no espaço.
Mas a reflexão pode ir ainda mais fundo. Nos dois dias subsequentes ao do atentado, gostei de ouvir vários espanhóis, gente do povo entrevistada pelas televisões, afirmar que o voto era a melhor arma que tinham contra os terroristas e que o terror não os ia afastar do seu propósito de reafirmar os valores democráticos em que acreditavam. Na altura acreditei que fosse possível uma resposta maciça expressa primeiro em número de votos e, talvez, também, em apoio ao governo visado pelos terroristas. Penso que o povo espanhol é suficientemente forte e fiel às suas convicções para poder ter tomado essa atitude.
Mas o que aconteceu foi exactamente o contrário. Não contra todas as expectativas, mas apesar de todas as expectativas. Se há povo que podia ter uma reacção deste tipo – sem dúvida a mais adequada para lidar com a ameaça terrorista - era o povo espanhol. Conheço vários outros povos, a começar pelo português, em relação aos quais consideraria menos provável uma reacção corajosa como a descrita e mais provável uma reacção medrosa como a que de facto aconteceu.
E o que isso significa é que, se os espanhóis reagiram desta maneira, nas urnas, à ameaça terrorista, os franceses, os alemães, os belgas, os portugueses, os dinamarqueses, os italianos, os australianos, os neo-zelandeses, etc, teriam reagido da mesma forma perante a mesma situação. O que significa, basicamente, que o sistema democrático é fundamentalmente fraco perante a ameaça fundamentalista islâmica. Os eleitores ocidentais pensam antes de mais no seu próprio bem-estar no momento do voto, enquanto que os fundamentalistas islâmicos pensam na sua religião antes da sua própria vida. E essa é uma diferença fundamental, tanto mais notória quanto mais alargada for a confrontação entre ambos. E, não fiz a estatística, mas não me parece que o número e gravidade de atentados terroristas de origem islâmica se tenha reduzido depois do 11 de Setembro, mesmo com o reforço de medidas de segurança um pouco por todo o lado. Bem pelo contrário. Como se disse na altura, o facto de um grupo de fundamentalistas islâmicos ter conseguido atingir de forma tão violenta o coração do mundo ocidental funcionou como um incentivo para milhares de outros islâmicos no mundo inteiro. E o atentado de Madrid – o primeiro grande atentado em território europeu depois de Lockerbie (se não estou em erro) – reforçou essa alavanca motivacional.
Ou seja, este problema não está em vias de se solucionar. Pelo contrário: está em vias de se tornar mais grave. A solução para o problema do fundamentalismo islâmico tem que atacar as suas causas profundas. Mesmo a aparentemente insolúvel resolução do conflito israelo-palestiniano seria escassa para, por si só, resolver o problema do fundamentalismo islâmico. Esse é um argumento usado pelos fundamentalistas, mas não é a essência da sua confrontação com o mundo ocidental. Usando, provavelmente com um sentido diferente, a expressão «it’s the economics, stupid», este é um conflito de dimensões civilizacionais que tem no modo de organização da economia global o principal conjunto de causas profunda. E se o conflito chegar a assumir proporções mundiais (o que, de certo modo, já está a acontecer) então também não me restam dúvidas de que, do ponto de vista ideológico, o fundamentalismo islâmico está muito mais bem preparado para o enfrentar do que as frágeis democracias ocidentais, fortes economicamente mas fracas ideologicamente.
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