A polémica pública que gerou o método de selecção de jovens para participarem numa iniciativa da McDonald’s ligada ao Euro2004 é claramente desproporcional face à importância do assunto e só encontra explicação no peso crescente que em Portugal têm os arautos do politicamente correcto. Neste aspecto, infelizmente, estamos cada vez mais «desenvolvidos».
Ao que parece, a ideia é que as crianças acompanhem os jogadores das diversas selecções do Europeu quando estes entram em campo, desde o momento em que abandonam os balneários até ao final da cerimónia dos hinos. Durante este período de tempo há uma "coreografia" simplicíssima: as equipas entram caminhando lado a lado, o capitão à frente os restantes jogadores atrás, cada um de mão dada com um miúdo vestido com equipamento da equipa contrária; alinham frente à bancada centra; e ouvem os respectivos hinos nacionais. Evidentemente, não há aqui nenhum exercício físico complexo subjacente, mas também não é aconselhável que as crianças seleccionadas para acompanharem os jogadores sejam deficientes físicas ou tenham problemas mentais susceptíveis de exigir acompanhamento especializado. Por razões bastante práticas que as situações em concreto ajudam a explicar. Por exemplo, no estádio Alvalade XXI, como noutros, a entrada dos jogadores faz-se por uma escada, o que dificulta que uma criança em cadeira de rodas possa acompanhar os jogadores, a não ser que queiramos que o Zinedine Zidane ajude o Thierry Henry a trazer a cadeira de rodas do seu acompanhante enquanto as câmaras de televisão vão filmando a cena para milhões de pessoas em todos o mundo. Outro exemplo: para que um deficiente mental pudesse acompanhar um jogador seria necessário que uma especialista o acompanhasse também de maneira a garantir que pudesse desenvolver sem falhas o comportamento correcto. Essa pessoa, obviamente, teria que ficar entre o Zidane e o Henry durante o hino francês. Mais uma vez com direito a transmissão televisiva para o mundo inteiro. Os exemplos podem parecer irónicos (ou mesmo cínicos, para alguns) mas não pretendem ser nem uma coisa nem outra. São apenas hipóteses práticas.
A McDonald’s (e a UEFA) podiam ter especificado que duas ou quatro em cada 22 crianças seleccionadas deviam ser crianças com problemas físicos ou mentais. Teriam que contar com medidas destinadas a enquadrar devidamente as crianças especiais no evento em que iriam participar, mas essa decisão ter-lhes-ia sem dúvida poupado alguns problemas e cairia bem juntos das mesmas pessoas agora criticaram. Mas não escolheram assim. Preferiram manter a operação o mais simples possível no interesse da "coreografia" que se pretende que a entrada das equipas em campo tenha. Estão no seu direito, sem beliscarem outros. No site da McDonald’s também está um concurso de desenho no qual dificilmente as crianças com deficiência mental ganharão. O SoccaStars (porquê Socca, já agora!) claramente é só para crianças capazes de correrem com uma bola a e chutarem-na. O «Quer quer ser milionário» não é aberto a deficientes mentais. Há milhares de pequenas coisas que uma criança deficiente física ou mental não pode fazer. E não é pelo facto de se proibir a existência de eventos em que elas não podem participar que se vai minorar a sua desvantagem. Ou sequer obrigando à sua participação em eventos para os quais não dispõem das mesmas condições que as outras crianças. É, ao contrário, promovendo eventos em que elas possam participar. Independentemente da sua desvantagem.
O politicamente correcto é redutor pelo simples facto de que, seja do que for que estejamos a falar, limita a gama de decisões disponíveis. Se alguém quiser fazer um concurso de beleza só para mulheres negras deve poder fazê-lo. Não deve ser obrigado a fazê-lo aberto a mulheres de todas as cores de pele. O que deve é haver liberdade para que alguém possa fazer um concurso de beleza só de mulheres brancas se assim o desejar. Um direito não colide com o outro e portanto não há razão para que seja limitado. Mesmo que socialmente se justifiquem medidas de incentivo a uma minoria que se sente ser frequentemente prejudicada. Se a McDonald’s tivesse previsto medidas de incentivo à participação de crianças com deficiência no seu evento, certamente mereceria um aplauso por isso. Mas o facto de o não ter feito não lhe acarreta necessariamente uma crítica. Neste caso a McDonald’s não fez qualquer discriminação positiva, mas também a não fez negativa. Simplesmente não fez qualquer discriminação. O que já é suficiente. Pedir mais do que isso é pedir a uma entidade (é válido para organizações ou pessoas) que siga a maneira mais consensual de fazer as coisas. E essa está longe de ser a única e em muitos casos pode até não ser a mais correcta. Exigir que as decisões sigam sempre a forma dominante de fazer as coisas é um imperativo de conformidade social absolutamente ditatorial, uma vez que limita a criatividade política, social, cultural, etc.
Para mim, o que é mais gritantemente criticável em todo este processo (um nome pomposo para aquele que é, repito, um assunto menor) é a forma como a vereadora da CML «amochou» perante o aparente consenso entre entidades diversas e meios de comunicação que se gerou acerca deste matéria. Isso sim é preocupante.
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