terça-feira, junho 29, 2004

O terramoto Durão

Algumas observações sobre a “exportação” de Durão Barroso:

1. O facto de um português poder vir a presidir à Comissão Europeia é sem dúvida prestigiante para o país. Mas não exageremos. É mais prestigiante para o próprio Durão Barroso do que para o país. Já vi escrito que o cargo de Presidente da Comissão era o terceiro cargo político mais importante no mundo actual. O que é um grande exagero a juntar a muitos pequenos exageros do mesmo teor que têm sido feitos nos últimos dias. A Presidência da Comissão nunca deixou de ser um cargo técnico mesmo quando a integração económica pressionou a integração política. E o efeito dessa pressão de integração e articulação política é, como se sabe, uma nova constituição europeia na qual a Comissão perde influência, justamente porque é um órgão técnico (próprio de uma Comunidade Económica mas não de um União Política). O que significa que, se a Constituição Europeia for aprovada, o cargo ao qual Durão Barroso está agora prestes a aceder será no futuro menos importante do que é hoje. Por outro lado, se a Constituição Europeia acabar por não ser aprovada (o que é possível se não mesmo provável se os governos optarem por de facto deixarem as populações expressarem a sua opinião em referendo), então a Comissão manterá as extensas atribuições que tem hoje mas receberá sobre os seus braços o peso insustentável de um crise política europeia sem precedentes (resultante da óbvia necessidade de aprofundamento político sem acordo entre as partes sobre como este deve ser feito, tudo num quadro alargado a 25 vozes).

2. Por outro lado, é também uma falácia pensar que o facto de o cargo de Presidente da Comissão Europeia ser desempenhado por um português pode trazer algum benefício ao país, tal como não consta que Romano Prodi tenha trazido alguma vantagem à Itália ou que Jaques Santer tenha feito algo de especial pelo seu Luxemburgo, um “país” ainda mais pequeno que Portugal. Tal como os comissários e por maioria de razão por ser chefe deles, o Presidente da Comissão tem que ser exemplarmente isento na gestão das políticas comunitárias. O que, bem vistas as coisas, até pode ter um efeito contrário: basta um pouco de excesso de zelo para que Portugal seja prejudicado e não beneficiado como forma de demonstrar a isenção do Presidente da Comissão Europeia.

3. Por outro lado ainda, não podemos esquecer que Durão Barroso foi pelo menos uma terceira escolha para o cargo, em resultado da ausência de acordo entre os grandes países de União. Assim a escolha de um nacional de um pequeno país resulta quase como um mínimo denominador comum do qual nem a França, nem a Alemanha, nem a Inglaterra esperam tanto quanto esperariam da sua primeira escolha.

4. Em face do exposto anteriormente, tenho sérias dúvidas que o cargo de Presidente da Comissão Europeia seja sequer mais importante do que o de Primeiro-ministro de Portugal. Eu, como votante para ambas as sedes de poder, certamente não lhe atribuo essa importância. E imagino que muitos outros portugueses pensem da mesma maneira. Se olharmos para os presidentes da Comissão Europeia vemos sobretudo pessoas que foram ministros dos respectivos governos e que, uma vez findo o seu mandato, “ascenderam” à Comissão. Se não estou em erro, não vemos sequer uma pessoa que tenha evoluído de um cargo de chefia de Governo ou da presidência de algum dos países da União para a liderança da Comissão Europeia. E basta perguntarmo-nos se achamos crível que Jaques Chirac, Gerhard Schroeder ou Tony Blair deixassem os respectivos governos – sobretudo meio do mandato – para irem ocupar o cargo de Presidente da Comissão? E se não o achamos crível para a França, Alemanha ou Grã-Bretanha, porque razão havíamos de o achar para Portugal? Ou seja, a escolha de Durão Barroso é compreensível do ponto de vista pessoal e profissional, mas não do ponto de vista das suas responsabilidades políticas. Eu esperaria de um governante com mais sentido de Estado que recusasse o cargo de presidente da Comissão Europeia senão em nome das suas preferências pessoais, pelo menos em nome das suas responsabilidades assumidas para com o povo português; e sobretudo tendo em conta que dificilmente tal saída pode ocorrer sem sérios tumultos políticos internos. Durão Barroso vai para a Bruxelas, mas deixa atrás de si um rasto de “destruição” que o próprio deveria ter sabido prever e evitar.

5. Esse “rasto de destruição” é já visível no PSD, com os conflitos latentes a tornarem-se expressos e as facas a serem afiadas para a longa noite de luta pelo poder. E, na verdade, é dentro do PSD que a questão deve ser dirimida, com mais ou menos sangue. No nosso regime constitucional, os resultados das eleições são a fonte do poder político, e o resultado das eleições não mudou pela demissão de Durão Barroso. Ao presidente cabe receber do partido mais votado a formação de um governo estável. E desde que ele seja estável e respeite os resultados eleitorais, o Presidente deve aceitá-lo. Cabe por isso ao PSD apresentar uma solução política que permita ambas as coisas e, se os órgãos internos do PSD estatutariamente encarregues dessa definição apresentarem Pedro Santana Lopes como a solução, então Pedro Santana Lopes deve ser o próximo primeiro-ministro. Sem eleições antecipadas.

6. Não faz sentido invocar eleições antecipadas sob o pretexto de que os portugueses votaram em Durão Barroso e não em Santana Lopes. Se as eleições legislativas foram tão pessoalizadas como têm sido a maioria dos actos eleitorais nos últimos anos, isso resulta de uma “doença” geral dos sistemas democráticos modernos, enredados nas teias da política-espectáculo. Porque, na realidade, aquilo em que os portugueses votaram – para agora não o esquecerem deviam na altura tê-lo recordado - foi em partidos políticos. E, desses, o PSD foi o mais votado, ganhando portanto o direito de propor uma liderança política para o país. Basta um exemplo para percebermos como os resultados eleitorais são a fonte do poder: a coligação centro-direita actualmente no governo não é pré-eleitoral. O que significa que quem votou, não votou para pôr a direita no poder e Paulo Portas no Governo. E não me lembro de alguém ter feito alguma manifestação para dizer que tinha votado em Durão e não em Portas, quando na realidade me parece muito mais significativa politicamente a ascensão do PP ao poder (sem qualquer reserva mental) do que a mera substituição do líder do PSD. Os resultados foram aceites em todas as suas consequências, tal como deve ser em democracia. E a verdade é que nada disso mudou entretanto. Mais razões haveria para pôr em causa o governo se surgissem problemas na coligação que o sustenta do que em resultado da demissão do primeiro-ministro.

7. O problema pode residir afinal na capacidade do PSD para propor uma solução estável de Governo. No seu afã de preservar o equilíbrio na coligação, escolhendo um nome aceitável pelo PP, Durão Barroso pode ter desequilibrado o próprio PSD, escolhendo um sucessor capaz de dividir as hostes como poucos. O Presidente da República está certamente atento e, se é verdade que o antevejo capaz de aceitar uma solução de continuidade (como impõem a nossa teoria e prática constitucionais), não é menos verdade que dispõe da margem de manobra suficiente para convocar eleições antecipadas caso detecte fissuras, primeiro na base partidária e depois na base social de apoio ao Governo. E isso foi o que vimos claramente nos últimos dias e nas últimas eleições europeias.

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