A maneira como um caso de polícia passado em Porto de Mós é reportado em três jornais diários diferentes é ilustrativo das diferenças e semelhanças entre eles mas também do quanto se não pode confiar nos jornais para saber o que realmente aconteceu. Os jornais em causa são o Jornal de Notícias, o Correio de Manha e o Público. A notícia é mais longa e detalhada no CM, um pouco mais pequena no JN e ainda mais reduzida no Público. Há algumas informações importantes para uma boa peça de reportagem em que os três jornais são unanímes: Houve uma pessoa morta; essa pessoa foi morta à facada; posteriormente foi enterrada na areia; houve também dois feridos, um deles grave; e tudo aconteceu em Porto de Mós. Mas é só isto. Em tudo o resto, os três jornais dão informações divergentes. E em “tudo o resto” há coisas que convinha que estivessem de acordo, como o sexo da vítima mortal (mulher em dois e homem num); o motivo do crime (passional ou roubo); e a nacionalidade dos alegados autores (desconhecida segundo o JN e de leste segundo os outros dois).
Sobre este pequeno exercício há alguma reflexões que podem ser feitas:
1.Obviamente duas pessoas que leiam esta notícia em dois jornais diferentes terão uma ideia diferente do que aconteceu. E se porventura comentarem o caso uma com a outra, poderão ter a vaga noção de que estão a falar do mesmo assunto (o areal, as facadas, o corpo enterrado na areia, a nacionalidade da vítima ou dos alegados autores) mas notarão de imediato a divergência de informações. Foi isso que de facto sucedeu e suscitou esta reflexão. E isso é talvez o pior que pode acontecer do ponto de vista do jornalismo. Significa que dois leitores concluem que o mes moacontecimento (nem sequer estamos a falar de interpretações; trata-se de um mero reportar de factos) pode dar origem a notícias substancialmente diferentes.
2. Se se fizer uma média entre as três notícias e se procurar o maior denominador comum como forma de nos aproximarmos do que de facto terá acontecido no areal de Porto de Mós, concluiremos que o Público, jornal de referência, é certamente o que está mais longe da verdade. Pode ser porque não arrisca informações tão “etéreas” quanto os outros, o que não me parece ser o caso nesta notícia em particular, embora admita que o possa ser em muitas outras deste teor. Também pode ser porque não tem devidamente “oleada” a máquina de produção deste tipo de notícias. Ou seja, os seus jornalistas, editores, etc, tratam mais frquentemente outros assuntos e a sua ligação ao terreno deste tipo de notícias é necessariamente diferente daquela que possuem os jornalistas ou editores do JN ou o CM. Para o Público, um assassínio à facada em Porto de Mós é uma pequena notícia no Local. No JN ou no CM é uma notícia bem mais importante(a dimensão desta é bem o exemplo disso) e até pode ser manchete.
Isto não parece novidade. Mas o que acho interessante é que, tendo a dúvida sido suscitada por uma conversa em que eu tinha lido no Público e outra pessoas tinha lido no JN referências diferentes à mesma notícia de “faca e alguidar”, se venha a concluir que a outra pessoa estava afinal, sobre este assunto em particular, mais bem informada do que eu. É primeiro que tudo um desprestígio para o jornal de referência, que, ou não aborda o assunto por o não achar relevante; ou, se o aborda, deve abordá-lo com as informações devidamente fundamentadas (é por isso que se diz “de referência"). Mas é também uma prova de que, para quem procura este tipo de notícias, o CM ou o JN são realmente as escolhas certas. Não porque dão estas notícias e os outros não, mas também porque as dão tecnicamente melhor: mais aprofundadas; mais detalhadas e sobretudo mais fundamentadas.
3. O grau de detalhe que o CM consegue reproduzir na notícia é espantoso. Enquanto os outros nem “cheiram” a verdade ou simplesmente andam às “apalpadelas”, o CM até dá nome à vítima e reproduz todo o acontecimento num curioso registo narrativo próximo do da novela venezuelana. E fá-lo porque é este o registo que procuram os seus leitores; não querem interpretação, enquadramento ou opinião, como os leitores do Público; querem apenas saber como tudo aconteceu. Por isso o CM vende quatro vezes mais do que o Público. Procura o seu público, dá-lhe o que ele quer e beneficia do facto de ele ser mais numeroso. Talvez os jornais e referência devessem também aproximar o seu estilo a este, com menos análise e mais narrativa. Talvez assim cumprissem melhor a sua função social.
4. Outra análise curiosa é a gradação dos títulos. Já se viu que a notícia do Público é a mais pequena, a do CM é a maior e a do JN está entre ambas. Ora, os títulos seguem a mesma gradação, do mais frio e isento de emoção para o mais exuberante e carregado de emoção, típico de um tablóide. O Público titula “Rixa em Lagos Faz Um Morto e Dois Feridos”; o JN tem no título “Mulher esfaqueada enterrada na praia” e o CM faz valer uma informação mais precisa para dizer “Morta com 20 facadas”. O número faz aqui o papel de elemento emocional; destina-se a despoletar uma reação no leitor, a reacção que o levará a ler a notícia e a memorizar toda a história. O “enterrada na praia” do JN é quase tão bom, mas fica ainda assim uns furos abaixo das “20 facadas” do CM.
5. Mas este número tão preciso do CM não é afinal tão preciso assim. O Correio da “manha” desmascara mais uma das suas “manhas” no parágrafo seguinte: “A jovem terá sofrido cerca de duas dezenas de golpes de faca, um pouco por todo o corpo, que lhe provocaram a morte, após o que os homicidas tentaram enterrá-la no areal. O rapaz, que também foi esfaqueado, terá desfalecido ou ter-se-á feito passar por morto, o que, ao que tudo indica, lhe terá salvo a vida.”
“Terá sofrido”? Então mas o título não dizia “Morta com 20 facadas”? Não interessa. Nesta altura o leitor já está preso à narrativa e nem repara. Caiu no logro e ficarão para sempre 20 facadas, reais ou não.
Por outro lado, no mesmo parágrafo, também é interessante o “terá desfalecido ou ter-se-á feito passar por morto”. É uma das duas coisas! Mas melhor ainda é o detalhe de que “ao que tudo indica” isso lhe terá salvo a vida. O que é que “indica”? Já sabemos que “tudo” indica isso. Mas que “tudo”? Que informações sustentam essa indicação? Aquelas que já lemos no restante na notícia?
Jornalismo tablóide é isto. É assim que se faz e é assim que opera na mente de quem o lê. Qualquer pessoa o pode fazer, desde que tenha estômago para isso.
Sem comentários:
Enviar um comentário