O Marinheiro já quase não se lembrava da última vez que tinha ido ao mar. Mas certo dia desvendou à mesa do café esse capítulo do seu passado e o rótulo colou-se-lhe como uma lapa. Vá lá perceber-se porquê? Caiu no goto dos companheiros e pronto. Hoje podiam perguntar a todos eles qual era o seu verdadeiro nome que poucos ou nenhuns saberiam responder. Todos o tratavam por Marinheiro e todos pensavam em ondas e em sal quando olhavam para ele, mesmo que esse fosse afinal apenas um pequeno capítulo da epopeia que tinha sido a sua vida. O Marinheiro andou no mar, é verdade, na pesca da sardinha, mas também carregou móveis, vendeu ferramentas, conduziu um taxi, abasteceu automóveis numa bomba de gasolina, foi ajudante de sapateiro, e viveu das esmolas alheias.
Hoje, o Marinheiro era um homem cansado e sozinho. A «sua velhota», como lhe chamava, tinha morrido há três anos de uma coisa no coração e ele sobrevivia desde então com a ajuda de alguns vizinhos e o sustento de uma reforma de miséria que todos os anos aumentava e parecia ficar mais curta. Por isso, passava as noites no clube, fintando a vida por entre copos de três. Acompanhava o dia-a-dia do seu Benfica como ninguém, dizia mal dos políticos todos sem excepção e encontrava uma réstia do sentido perdido da vida quando chegavam os santos populares e o pessoal lá do clube lhe pedia para ajudar no bar. Nesses dias ficava sempre mais irritadiço, primeiro porque encarava a sua pequena tarefa com o espírito de missão de quem embarca para a última faina, depois porque, entre dois servidos e um bebido, acabava sempre com uma carraspana de caixão à cova. Quem o conhecia já sabia o que acontecia a seguir: fechado o bar, arrumadas as cadeiras, o Marinheiro arregaçava as mangas da camisola até aos ombros, lançava uma qualquer imprecação aos jovens que por ali estivessem, do género «são putos novos, mas não batem aqui o velhote, seus merdanas», e começava a correr sem parar à volta do quarteirão. Se alguém lhe lançava um piropo entre sorridos – «Força marinheiro» – respondia sempre. Umas vezes com um som imperceptível e gutural, outras vezes com um claro «vai à merda!» Normalmente continuava até não ter mais força, o que, com a precisão de um relógio, acontecia por volta das 3 ou 4 da manhã. Então o Marinheiro sentava-se no passeio, encostava-se ligeiramente ao que quer que fosse que estivesse por perto – uma árvore, um carro ou um caixote da fruta – e o mais provável era que adormecesse ali mesmo.
No dia seguinte lembrava-se de tudo sem se lembrar de nada. Lembrava-se que ter bebido e de ter corrido, mas não fixava a quem tinha respondido, quanto tempo tinha corrido ou onde tinha «encostado». Por isso, quando alguém lhe perguntava quantas voltas tinha dado – incrivelmente, as pessoas eram sempre diferentes, mas a pergunta era sempre a mesma – inventava um número grande e redondo – «30» – e satisfazia a curiosidade alheia sem mais comentários ou pormenores. O ouvinte normalmente sorria sem exuberância, com a serenidade de quem já sabia a resposta antes de ter feito a pergunta.
Por isso, ninguém estranhou quando, naquela noite, bem bebido e razoavelmente cambaleante, o Marinheiro iniciou mais uma das suas maratonas à volta do quarteirão. O bar fechou, a festa desfez-se, toda a gente foi para a cama e do Marinheiro só se ouviu falar no dia seguinte. Alguém o tinha encontrado encostado a uma árvore como se dormisse profundamente. «Heh, marinheiro, vai para casa», gritou-lhe alguém. «Marinheiro! Acorda dorminhoco. Ainda ficas com a espinha torta. Vai dormir para a cama.» À falta de resposta, alguém se aproximou e lhe tocou no ombro. O corpo cedeu e resvalou para o chão mostrando os olhos apenas semicerrados, os lábios roxos e os membros inertes. Como era agora fácil de adivinhar, naquela noite, por volta das três ou quatro da manhã, o Marinheiro não se encostou à árvore apenas porque estava cansado. Uma forte dor no peito, cada vez mais intensa e assustadora, tomou conta do seu corpo até não conseguir respirar. Pareceu-lhe que ia morrer de asfixia, mas acabou por sucumbir por «paragem da máquina», como tantas vezes tinha previsto: «um dia a máquina pára e então acaba-se tudo», dizia.
Quem conhecia o Marinheiro – e, melhor ou pior, de certa forma todos o conheciam – ficou surpreendido mas não incrédulo. «Já era de esperar» disse alguém, «com a vida que ele levava...». «Mais cedo ou mais tarde, toca a todos», asseverou outrem. «Para andar cá a penar, se calhar mais vale assim», concluiu a vizinha que o ajudava a sobreviver.
Ao funeral do Marinheiro compareceu uma multidão de gente anónima e nenhum familiar. Muitos só então se perguntaram «será que ele tinha família?» Não tinha. E a que tinha estava ali. Os miúdos que tantas vezes tinham gozado com ele nas noites de correria sustinham agora uma lágrima no canto do olho para não darem parte de fracos. Os mais velhos começavam por despedir-se com pena de um velho louco mas acabavam invariavelmente a contar as pessoas presentes no funeral e a desejar, num acto de contrito respeito, ter tantas no seu como o velho louco tinha no dele. Na despedida do Marinheiro, o ar transportava um leve aroma de maresia que todos atribuíam às lágrimas. Suspenso no ar a caminho do Céu, o Marinheiro inalou pela última vez um cheiro terreno, compreendeu finalmente porque razão lhe chamavam assim e deu por bem empregue a sua vida.
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