A posição do PP a propósito da condecoração de Isabel do Carmo, recusando-se a comparecer na cerimónia, é compreensível e até aceitável. É coerente com o discurso do partido, manifesta uma posição sem afrontar as instituições e tem fundamentos para reflexão.
Depois do 11 de Setembro, do atentado que vitimou Sérgio Vieira de Mello e das explosões de Madrid, a sensibilidade europeia ocidental face ao terrorismo mudou sensivelmente. Se já antes a frequência verdadeiramente assustadora com que explodiam os autocarros cheios de israelitas causava perplexidade a qualquer espírito não alinhado ideologicamente, agora é ainda maior o número de pessoas que compreendem porque razão existe terrorismo mas não o consideram legítimo. É verdade que Yasser Arafat continua a gozar de grande prestígio, mas mais pelo seu passado do que pelo seu presente, mais como representante de um povo martirizado a caminho do ocaso político do que como efectivo líder do movimento. Os efectivos terroristas, esses não recebem da opinião pública ocidental, em particular dos seus intelectuais, o mesmo grau de simpatia de que muitos terroristas beneficiaram no passado.
O clima político favorece, portanto, posições anti-terroristas e o PP foi inteligente ao percebê-lo. Mas, mais do que uma mera manobra de aproveitamento político, a decisão de não comparecer à cerimónia de atribuição das comendas como forma de protesto contra o elogio público de Isabel do Carmo parece genuína e é sem dúvida coerente com as posições recentes do partido e mesmo com a sua história.
Mas igualmente coerente foi o presidente Jorge Sampaio. Sampaio foi eleito com base num programa presidencial de esquerda (tão de esquerda quanto o pode ser um programa presidencial, obviamente com muitas ideias e poucas propostas de acção) e pôs a sufrágio – como qualquer candidato a presidente – o seu passado político, como se sabe recheado de posições pessoais corajosas e cheias de implicações práticas em defesa de valores que Isabel do Carmo partilha e a referida comenda se destina a premiar. Por isso, mesmo que não fosse previsível, a atribuição da Ordem da Liberdade a Isabel do Carmo era plausível. Não seria fácil de prever mas seria fácil de conceber atendendo ao que é a história política de Sampaio e as suas posições recentes.
Temos portanto uma reacção séria e legítima de um partido político, fundada nos valores que defende, à posição igualmente séria e legitima de um Presidente da República, em coerência com os princípios que defende e em nome dos quais foi eleito. As duas entidades tiveram portanto bem neste processo e deram ambas um exemplo de boa política, a contrastar com os muitos de sentido contrário que diariamente nos desiludem.
Mas a cereja no bolo veio da própria Isabel do Carmo que, quando confrontada com a recusa do PP em participar na cerimónia, considerou que essa recusa tinha «significado» e disse que já esperava esta reacção dos «partidos de direita para os quais a minha pessoa deve ser insuportável de facto. E oxalá que seja!». Nada mais claro portanto: a extrema-direita onde deve estar, a extrema-esquerda nos seus antípodas e o Presidente no cumprimento do seu programa eleitoral. Todos em respeito uns pelos outros e ao sistema democrático que lhes enquadra o discurso e a acção política. O acontecimento não é grandiloquente, mas a acção das partes foi-o.
Tese + Antítese = Síntese. Espaço de reflexão sobre a actualidade. Media, política e jornalismo.
segunda-feira, abril 26, 2004
quinta-feira, abril 22, 2004
Tudo o que se diz...
A capa do Record de hoje passa certamente a constituir mais uma página para a história do mau jornalismo em Portugal. O título garrafal diz simplesmente isto a propósito de Valentim Loureiro: «Tudo o que se diz que ele fez». Tudo o que «se diz»? Há alguma confirmação (já nem peço duas…) para o que «se diz»? Corresponde «o que se diz» a alguma acusação ou alguma denúncia imputável a alguém? Claro que não. «O que se diz» é simplesmente tudo aquilo de que os editores do jornal tomarem conhecimento e que achem suficientemente interessante para publicar. Independentemente de ter ou não ter qualquer tipo de confirmação. Não vi em detalhe o conteúdo do jornal, mas imagino que corresponde ao que é anunciado na primeira página.
Então pergunto: o que me impede a mim de, para prejudicar alguém ou por simples gozo, telefonar anonimamente para o jornal a dizer que também fui aliciado pelo suspeito A ou B para influenciar a classificação do árbitro X em função de um seu «serviço» no jogo Y. Se a montagem fosse minimamente credível e estivessem em causa clubes sonantes, seriam os mesmos editores que seguem esta política informativa capazes de resistir a publicar a informação ao abrigo do critério de «o que se diz».
Publicar «o que se diz» contraria todas as regras do jornalismo e coloca o órgão informativo que o faz à mercê de todo o tipo de imprecisões e manipulações. E não é por acontecer num jornal desportivo que esta primeira página deve merecer menos o nosso repúdio do que mereceria se acontecesse no Público ou no Diário de Notícias. Ou será que, tal como o futebol na sociedade, também o jornalismo desportivo é um mundo à parte do restante jornalismo? Será que não é também composto por jornalistas encartados? Será que não tem por missão transmitir informações fidedignas sobre as matérias que aborda? Talvez muitas pessoas achem que o assunto é de somenos porque estamos a falar de jornalismo desportivo, mas isso é um erro. É um erro correntemente repetido, mas não deixa de ser um erro. Primeiro porque, como todo o jornalismo, também o jornalismo desportivo contribui para a formação da opinião das pessoas sobre a actualidade; e, como toda a comunicação social, também aquilo que publicam os jornais desportivos serve para moldar o nosso entendimento da via em sociedade. E o que uma primeira página como esta diz a uns largos milhares de pessoas (tomara o Público ou o DN…) – tal como muitas outras capas que a imprensa desportiva publica com numa preocupante regularidade – é que não se pode confiar nos jornais. Desportivos ou não desportivos. Ou seja, uma primeira página como esta presta um mau serviço ao jornalismo, mas, sobretudo, presta um mau serviço à sociedade.
Então pergunto: o que me impede a mim de, para prejudicar alguém ou por simples gozo, telefonar anonimamente para o jornal a dizer que também fui aliciado pelo suspeito A ou B para influenciar a classificação do árbitro X em função de um seu «serviço» no jogo Y. Se a montagem fosse minimamente credível e estivessem em causa clubes sonantes, seriam os mesmos editores que seguem esta política informativa capazes de resistir a publicar a informação ao abrigo do critério de «o que se diz».
Publicar «o que se diz» contraria todas as regras do jornalismo e coloca o órgão informativo que o faz à mercê de todo o tipo de imprecisões e manipulações. E não é por acontecer num jornal desportivo que esta primeira página deve merecer menos o nosso repúdio do que mereceria se acontecesse no Público ou no Diário de Notícias. Ou será que, tal como o futebol na sociedade, também o jornalismo desportivo é um mundo à parte do restante jornalismo? Será que não é também composto por jornalistas encartados? Será que não tem por missão transmitir informações fidedignas sobre as matérias que aborda? Talvez muitas pessoas achem que o assunto é de somenos porque estamos a falar de jornalismo desportivo, mas isso é um erro. É um erro correntemente repetido, mas não deixa de ser um erro. Primeiro porque, como todo o jornalismo, também o jornalismo desportivo contribui para a formação da opinião das pessoas sobre a actualidade; e, como toda a comunicação social, também aquilo que publicam os jornais desportivos serve para moldar o nosso entendimento da via em sociedade. E o que uma primeira página como esta diz a uns largos milhares de pessoas (tomara o Público ou o DN…) – tal como muitas outras capas que a imprensa desportiva publica com numa preocupante regularidade – é que não se pode confiar nos jornais. Desportivos ou não desportivos. Ou seja, uma primeira página como esta presta um mau serviço ao jornalismo, mas, sobretudo, presta um mau serviço à sociedade.
quarta-feira, abril 21, 2004
Justiça à americana
A propósito da notícia de que as crianças sexualmente molestadas dos Açores tinham desistido das respectivas queixasa troco de dinheiro, preocupa-me que o responsável pelo organismo de ética da Ordem dos Advogados tenha dito na TSF que considerava essa solução aceitável, desde que fosse uma decisão informada e devidamente mediada por uma negociação entre os advogados. Obviamente, tal posição pretende antes de tudo, preservar a posição dos advogados, como convém a um representante de classe e isso nada tem de pernicioso. A haver uma negociação, ela deve ser informada e negociada pelos advogados. Nada mais natural, portanto.
Mas esta tomada de posição também tem subjacente, na minha opinião, uma visão do sistema de justiça com a qual eu não concordo. Não sou jurista, mas como cidadão parece-me que o conceito de indemnização faz sentido num processo cível, mas não faz o mesmo sentido, ou pelo menos não tem o mesmo valor, num processo criminal. Num processo cível repara-se um dano, num processo criminal pune-se um crime. Neste caso a indemnização é uma sanção apenas acessória e a sanção essencial é a punição do criminoso. E não interessa aqui se se trata de crimes públicos, semi-públicos ou privados. Isso só interessa do ponto de vista de quem pode acusar, não do ponto de vista de como o processo é resolvido.
Parece-me, e é isso que mais me preocupa, que a posição do referido dirigente da Ordem dos Advogados se inscreve numa tendência de aproximação da nossa maneira de operar a justiça à forma como isso é feito no sistema de justiça norte-americano. A justiça norte-americana é certamente a mais eficaz do mundo civilizado. Os processos são céleres, as negociações são abundantes e altamente profissionais, reservando espaço e tempo judicial para os casos que realmente dele necessitam. Mas, como europeu, o sistema de justiça norte-americano causa-me algumas reservas, basicamente porque leva os mecanismos que o tornam eficaz muito perto de atingirem os valores que sustentam os princípios do sistema de justiça. Ultrapassam-nos algumas vezes, mas sobretudo forçam-nos muitas vezes. Como europeu custa-me a aceitar. Uma solução como a proposta, que corresponde basicamente a um mecanismo de «pagar para calar», deixa sempre um travo amargo a injustiça, mesmo que seja para preservar um interesse público entendido como superior, o que no caso em concreto é aliás difícil de aceitar.
Num outro nível mas seguindo o mesmo raciocínio, a negociação que perdoa a um arguido alguns dos numerosos crimes que lhe são imputados para se poder acusar outros arguidos, se calhar menos «criminosos» mas mais poderosos ou colocados mais acima na escala hierárquica do crime, também belisca o mesmo princípio da justiça criminal. Todos percebemos que é muito mais eficaz assim, mas causa algum desconforto pensar que um indivíduo que é responsável por crimes graves seja aliviado da responsabilidade criminal pelos mesmos para condenar outros. Essa é uma situação injusta primeiro que tudo para as vítimas do primeiro criminoso, obviamente, mas que estende esse sentimento de injustiça a toda a comunidade.
Pode-se argumentar que essa negociação deve ser a excepção e não a regra. Mas uma vez aberto o precedente, ela tende inevitavelmente a tornar-se a regra e não a excepção, uma vez que os acusadores não resistem a uma meio tão expedido de alargar o número de acusações, o principal indicador da sua própria eficácia, mais do que as próprias condenações.
Pegando num exemplo prático, se estivéssemos nos EUA, um criminoso como Bibi decerto já teria feito uma negociação (como se anuncia que pode vir a fazer) permitindo ilibá-lo de algumas das penas que lhe seriam devidas por troca com a colaboração com a justiça na acusação a outros arguidos «mais importantes» mas provavelmente menos prevaricadores. Mas é por esse ser um recurso tão frequente nos EUA que ele se torna banal e se converte muitas vezes na primeira opção, o que, se é verdade que resolve os casos de uma forma mais simples e mais rápida, não é menos verdade que acaba por deixar impunes criminosos muitas vezes mais assustadores do que aqueles que permite apanhar. A justiça é mais eficiente porque reduz a impunidade mas é menos justa porque reduz penas a quem as merecia cumprir. E, afinal, a «justiça» deve ser o primeiro valor que o sistema deve preservar.
Decerto o representante da Ordem dos Advogados anteriormente aludido também defende uma negociação neste caso, e pelas mesmíssimas razões que o fez no primeiro. Mas se nos EUA isso não causa incómodo, acho que na Europa – e particularmente em Portugal no que se refere a Bibi e ao caso Casa Pia – uma solução desse género deixaria um travo amargo a injustiça. O que tem que ver com o facto de o apego aos valores e à sua preservação ser mais forte na Europa do que nos EUA. Há aqui matrizes culturais que nos distinguem, que devemos preservar e que devem enformar o modo como lidamos com a aplicação da justiça.
Mas esta tomada de posição também tem subjacente, na minha opinião, uma visão do sistema de justiça com a qual eu não concordo. Não sou jurista, mas como cidadão parece-me que o conceito de indemnização faz sentido num processo cível, mas não faz o mesmo sentido, ou pelo menos não tem o mesmo valor, num processo criminal. Num processo cível repara-se um dano, num processo criminal pune-se um crime. Neste caso a indemnização é uma sanção apenas acessória e a sanção essencial é a punição do criminoso. E não interessa aqui se se trata de crimes públicos, semi-públicos ou privados. Isso só interessa do ponto de vista de quem pode acusar, não do ponto de vista de como o processo é resolvido.
Parece-me, e é isso que mais me preocupa, que a posição do referido dirigente da Ordem dos Advogados se inscreve numa tendência de aproximação da nossa maneira de operar a justiça à forma como isso é feito no sistema de justiça norte-americano. A justiça norte-americana é certamente a mais eficaz do mundo civilizado. Os processos são céleres, as negociações são abundantes e altamente profissionais, reservando espaço e tempo judicial para os casos que realmente dele necessitam. Mas, como europeu, o sistema de justiça norte-americano causa-me algumas reservas, basicamente porque leva os mecanismos que o tornam eficaz muito perto de atingirem os valores que sustentam os princípios do sistema de justiça. Ultrapassam-nos algumas vezes, mas sobretudo forçam-nos muitas vezes. Como europeu custa-me a aceitar. Uma solução como a proposta, que corresponde basicamente a um mecanismo de «pagar para calar», deixa sempre um travo amargo a injustiça, mesmo que seja para preservar um interesse público entendido como superior, o que no caso em concreto é aliás difícil de aceitar.
Num outro nível mas seguindo o mesmo raciocínio, a negociação que perdoa a um arguido alguns dos numerosos crimes que lhe são imputados para se poder acusar outros arguidos, se calhar menos «criminosos» mas mais poderosos ou colocados mais acima na escala hierárquica do crime, também belisca o mesmo princípio da justiça criminal. Todos percebemos que é muito mais eficaz assim, mas causa algum desconforto pensar que um indivíduo que é responsável por crimes graves seja aliviado da responsabilidade criminal pelos mesmos para condenar outros. Essa é uma situação injusta primeiro que tudo para as vítimas do primeiro criminoso, obviamente, mas que estende esse sentimento de injustiça a toda a comunidade.
Pode-se argumentar que essa negociação deve ser a excepção e não a regra. Mas uma vez aberto o precedente, ela tende inevitavelmente a tornar-se a regra e não a excepção, uma vez que os acusadores não resistem a uma meio tão expedido de alargar o número de acusações, o principal indicador da sua própria eficácia, mais do que as próprias condenações.
Pegando num exemplo prático, se estivéssemos nos EUA, um criminoso como Bibi decerto já teria feito uma negociação (como se anuncia que pode vir a fazer) permitindo ilibá-lo de algumas das penas que lhe seriam devidas por troca com a colaboração com a justiça na acusação a outros arguidos «mais importantes» mas provavelmente menos prevaricadores. Mas é por esse ser um recurso tão frequente nos EUA que ele se torna banal e se converte muitas vezes na primeira opção, o que, se é verdade que resolve os casos de uma forma mais simples e mais rápida, não é menos verdade que acaba por deixar impunes criminosos muitas vezes mais assustadores do que aqueles que permite apanhar. A justiça é mais eficiente porque reduz a impunidade mas é menos justa porque reduz penas a quem as merecia cumprir. E, afinal, a «justiça» deve ser o primeiro valor que o sistema deve preservar.
Decerto o representante da Ordem dos Advogados anteriormente aludido também defende uma negociação neste caso, e pelas mesmíssimas razões que o fez no primeiro. Mas se nos EUA isso não causa incómodo, acho que na Europa – e particularmente em Portugal no que se refere a Bibi e ao caso Casa Pia – uma solução desse género deixaria um travo amargo a injustiça. O que tem que ver com o facto de o apego aos valores e à sua preservação ser mais forte na Europa do que nos EUA. Há aqui matrizes culturais que nos distinguem, que devemos preservar e que devem enformar o modo como lidamos com a aplicação da justiça.
domingo, abril 18, 2004
Teste de sanidade social
Ontem, quando alguém a meu lado folheava uma revista do «social», por um mero acaso pus-me a reparar que página após página, não conhecia nenhuma das pessoas que eram objecto das mesmas: modelos, actores ou actrizes de televisão, modistas, ex-participantes em concursos, etc. E isso levou-me a pensar neste modo original de medir a nossa sanidade social.
Recuando há não mais de um ano atrás, recordo o assombro com que detectava o meu próprio conhecimento acerca de um conjunto de gente que ocupava as páginas do «social» e à qual eu não reconhecia nenhum mérito especial para merecer essa atenção. E, em parte, esse conhecimento resultava do facto de as pessoas retratadas nesses artigos serem frequente objectos de conversa: ao almoço, no emprego, nos transportes, etc. Pareciam estar por toda a parte, impondo-se-me como se independentemente da minha vontade. Não chegaria ao ponto de considerar a sua recusa anti-social, mas não anvada longe de o ser.
Mas agora, passo os olhos por um exemplar ao acaso de uma revista do «social» e já quase não conheço ninguém. O que me deixa sinceramente empolgado. Como se as coisas assumissem o seu curso natural. É perfeitamente natural que eu não conheça uma pessoa que participou num concurso televisivo há uns meses atrás e hoje faz não sei bem o quê no mundo da moda. Esse desconhecimento faz-me sentir bem comigo próprio, tal como dantes o conhecimento que tinha de pessoas que não sabia porque razão conhecia me fazia sentir incomodado.
A nossa sanidade mental está em causa quando a nossa auto-imagem não é coerente com aquilo que somos ou com o nosso comportamento. Do mesmo modo, a nossa sanidade social está afectada quando as nossas ligações sociais, directas ou mediadas pela comunicação social, não estão de acordo com o que realmente achamos que é importante. Não está aqui subjacente nenhum juízo de valor do género «eu estou certo, o tipo que se interessa pelo ex-concorrente do Big Brother está errado». Não se trata disso. Trata-se simplesmente de manter a coerência entre aquilo (e as pessoas) que achamos importantes e aquilo (e as pessoas) com que nos ligamos socialmente. E, no meu caso, particular, descobrir que passo folhas várias de uma revista do «social» antes de descobrir alguém que eu conheça, revela, em primeiro lugar, que não conheço as pessoas que realmente não me interessa conhecer; e indicia, em segundo lugar, que tenho estado a ocupar o meu tempo social com coisas bem mais importantes do que aquelas que para mim não têm qualquer importância.
Daí que me atreva a propor este exercício de teor estatístico para avaliar a sanidade social de quem se interessa por aquilo que realmente é importante: reunir três revistas do «social», de preferência da mesma semana (tipo Caras, Vip e Nova Gente), e folheá-las anotando o número de «figuras públicas» que conhecemos. E depois repetir o exercício uns meses depois. Se esse número diminuir, e porque estamos no bom caminho.
Recuando há não mais de um ano atrás, recordo o assombro com que detectava o meu próprio conhecimento acerca de um conjunto de gente que ocupava as páginas do «social» e à qual eu não reconhecia nenhum mérito especial para merecer essa atenção. E, em parte, esse conhecimento resultava do facto de as pessoas retratadas nesses artigos serem frequente objectos de conversa: ao almoço, no emprego, nos transportes, etc. Pareciam estar por toda a parte, impondo-se-me como se independentemente da minha vontade. Não chegaria ao ponto de considerar a sua recusa anti-social, mas não anvada longe de o ser.
Mas agora, passo os olhos por um exemplar ao acaso de uma revista do «social» e já quase não conheço ninguém. O que me deixa sinceramente empolgado. Como se as coisas assumissem o seu curso natural. É perfeitamente natural que eu não conheça uma pessoa que participou num concurso televisivo há uns meses atrás e hoje faz não sei bem o quê no mundo da moda. Esse desconhecimento faz-me sentir bem comigo próprio, tal como dantes o conhecimento que tinha de pessoas que não sabia porque razão conhecia me fazia sentir incomodado.
A nossa sanidade mental está em causa quando a nossa auto-imagem não é coerente com aquilo que somos ou com o nosso comportamento. Do mesmo modo, a nossa sanidade social está afectada quando as nossas ligações sociais, directas ou mediadas pela comunicação social, não estão de acordo com o que realmente achamos que é importante. Não está aqui subjacente nenhum juízo de valor do género «eu estou certo, o tipo que se interessa pelo ex-concorrente do Big Brother está errado». Não se trata disso. Trata-se simplesmente de manter a coerência entre aquilo (e as pessoas) que achamos importantes e aquilo (e as pessoas) com que nos ligamos socialmente. E, no meu caso, particular, descobrir que passo folhas várias de uma revista do «social» antes de descobrir alguém que eu conheça, revela, em primeiro lugar, que não conheço as pessoas que realmente não me interessa conhecer; e indicia, em segundo lugar, que tenho estado a ocupar o meu tempo social com coisas bem mais importantes do que aquelas que para mim não têm qualquer importância.
Daí que me atreva a propor este exercício de teor estatístico para avaliar a sanidade social de quem se interessa por aquilo que realmente é importante: reunir três revistas do «social», de preferência da mesma semana (tipo Caras, Vip e Nova Gente), e folheá-las anotando o número de «figuras públicas» que conhecemos. E depois repetir o exercício uns meses depois. Se esse número diminuir, e porque estamos no bom caminho.
Outra vez Saramago
Já comecei a ler romances de Saramago umas quantas vezes, mas apenas uma ou duas consegui acabá-los com um mínimo de interesse. Na verdade carreguei essa aparente impossibilidade de me ligar enquanto leitor com o mais famoso dos nossos escritores actuais com algum desconforto. Mas recentemente tenho vindo a descobrir que estou longe de ser o único e até me parece que somos mais os que não lemos Saramago do que os que o lêem com prazer. Isso deu-me coragem «to come out of the closet». Hoje em dia são certamente aqueles que se deliciam com Saramago que estão «in closet», cada vez menos à vontade para «confessarem» publicamente as suas preferências. O que constitui uma imensa ironia e um enorme ingratidão para com o próprio Saramago.
Goste-se ou não da escrita de Saramago – e eu incluo-me no segundo grupo – ele é o mais elevado vulto da literatura portuguesa actual e um dos maiores que alguma vez houve. Quando falamos de Saramago, falamos de um dos dois portugueses alguma vez laureados com um prémio Nobel e o único em Literatura. E falamos do português mais lido em todo o mundo. Não temos nenhum músico, pintor ou realizador cinematográfico com o mesmo grau de projecção internacional na sua área. Mesmo olhando para a o desporto, onde o grau de projecção é muito mais facilmente mensurável em títulos, temos somente dois campeões olímpicos e o inevitável Luís Figo.
Por isso, goste-se ou não da sua escrita, goste-se ou não das suas ideias políticas, Saramago deve ser respeitado. Para dar apenas alguns exemplos, não me parece elegante dizer, como Manuel António Pina «Até eu, pouco entusiasta de prosa sem pontuação, cheguei a pensar comprar o livro» (sublinhado meu), mesmo que seja numa crónica que no essencial estranha este corrupio à volta do último romance de Saramago, afinal apenas mais um romance. Também não me parece correcta a forma como ouvi Pacheco Pereira desvalorizar a instituição do Nobel, obviamente, todos o percebemos, porque Saramago o venceu. Por fim parece-me ainda mais criticável, dizer, como faz Pulido Valente, que «No fundo, no fundo, o nosso homem deve o seu Nobel à providencial burrice do pobre Sousa Lara. Infelizmente, em vez de agradecer, continuou «zangado» com o país, que por ínvios caminhos tão bem o tratara (…). Saramago vai ganhar com isto o patrocínio oficial para a sua beatificação literária.» Então Saramago deve ser responsabilizado por ter sido censurado há 12 anos, como se isso fizesse parte de um elaborado plano para vender mais livros? Podemos ler ou não ler Saramago, podemos concordar ou não com as suas ideias políticas, mas não devemos deixar as nossas discordâncias estéticas ou políticas toldar-nos o bom senso. Como manifestamente aconteceu com Pacheco Pereira e Vasco Pulido Valente.
Goste-se ou não da escrita de Saramago – e eu incluo-me no segundo grupo – ele é o mais elevado vulto da literatura portuguesa actual e um dos maiores que alguma vez houve. Quando falamos de Saramago, falamos de um dos dois portugueses alguma vez laureados com um prémio Nobel e o único em Literatura. E falamos do português mais lido em todo o mundo. Não temos nenhum músico, pintor ou realizador cinematográfico com o mesmo grau de projecção internacional na sua área. Mesmo olhando para a o desporto, onde o grau de projecção é muito mais facilmente mensurável em títulos, temos somente dois campeões olímpicos e o inevitável Luís Figo.
Por isso, goste-se ou não da sua escrita, goste-se ou não das suas ideias políticas, Saramago deve ser respeitado. Para dar apenas alguns exemplos, não me parece elegante dizer, como Manuel António Pina «Até eu, pouco entusiasta de prosa sem pontuação, cheguei a pensar comprar o livro» (sublinhado meu), mesmo que seja numa crónica que no essencial estranha este corrupio à volta do último romance de Saramago, afinal apenas mais um romance. Também não me parece correcta a forma como ouvi Pacheco Pereira desvalorizar a instituição do Nobel, obviamente, todos o percebemos, porque Saramago o venceu. Por fim parece-me ainda mais criticável, dizer, como faz Pulido Valente, que «No fundo, no fundo, o nosso homem deve o seu Nobel à providencial burrice do pobre Sousa Lara. Infelizmente, em vez de agradecer, continuou «zangado» com o país, que por ínvios caminhos tão bem o tratara (…). Saramago vai ganhar com isto o patrocínio oficial para a sua beatificação literária.» Então Saramago deve ser responsabilizado por ter sido censurado há 12 anos, como se isso fizesse parte de um elaborado plano para vender mais livros? Podemos ler ou não ler Saramago, podemos concordar ou não com as suas ideias políticas, mas não devemos deixar as nossas discordâncias estéticas ou políticas toldar-nos o bom senso. Como manifestamente aconteceu com Pacheco Pereira e Vasco Pulido Valente.
sábado, abril 17, 2004
Voto em branco
No âmbito da polémica criada a propósito do mais recente romance de José Saramago houve opiniões e tomadas de posição que claramente misturaram coisas que não deveriam ser misturadas e assim tornaram confuso um debate de ideias que – como qualquer um – seria tanto mais produtivo quando menos confuso fosse.
Pelo que julgo ter percebido José Saramago romanceou uma situação hipotética em que o voto em branco se torna numa arma política para uma maioria da população descontente com o sistema de partidos que rege a democracia em que vivem. Depois, na explicação da sua própria obra literária, Saramago parece ter ido mais além e ter sugerido a validade dessa prática para além da ficção. Não vi declarações suas claras nesse sentido, mas também não as vi em sentido contrário. E qualquer modo, se sim ou não o escritor transformou uma obra de ficção numa proposta política real, é importante mas irrelevante para aquilo que em toda esta polémica me parece mais interessante: a maneira como o pensamento pode ser toldado por ideias preconcebidas.
A ideia de uma população descrente na política que maioritariamente vota em branco e assim cria um problema político de difícil solução é original e criativa. Original porque ninguém se tinha lembrado dela antes e criativa porque abre linhas de reflexão interessantes (se não mesmo de acção: e se de repente aumentasse significativamente a percentagem de votos em branco nas eleições europeias?). É uma ideia que levanta mais questões do que dá respostas e por isso tem todos os atributos de poder gerar à sua volta um interessante debate. Por isso, o pior que se lhe pode fazer é descartá-la em nome de ideias preconcebidas acerca do autor da proposta ou das suas supostas intenções ao fazê-la. A partir do momento em que é lançada, a ideia do voto em branco como arma política significativa pode e deve ser discutida por si mesma, independentemente do autor.
Houve pessoas que claramente minimizaram a ideia como um esoterismo de um conhecido comunista; outras entenderam-na como uma manobra de promoção de mais um best-seller; outras ainda como o devaneio de um intelectual pró-cubano. Como se o facto e ele ser comunista, o facto de haver um livro ou de Saramago ser pró-cubano fosse parte da ideia. Não é. A ideia subsiste por si e só não é espontaneamente gerada porque necessita de um intelecto para nascer. Mas uma vez nascida é propriedade de todos os intelectos que com ela se desejem ocupar.
E é desgostoso ver homens brilhantes na arte de exercitar o intelecto a deixarem as suas predisposições anti-Saramago, quaisquer que elas sejam, interporem-se no caminho entre eles e uma ideia tão potencialmente rica como esta. É sobretudo desgostoso para quem espera ansiosamente que eles se pronunciem. Eu senti esse tipo particular de desilusão a propósito de Pacheco Pereira e de Vasco Pulido Valente. Bem sei que ambos se posicionam bastante à direita de Saramago. Mas esperava que conseguissem pronunciar-se sobre a ideia em si sem se deixarem toldar pelas suas opiniões políticas ou literárias sobre Saramago, que o acaso fez autor da ideia. Como espectador atento, acho um desperdício dos seus intelectos. Um verdadeiro voto em branco...
Pelo que julgo ter percebido José Saramago romanceou uma situação hipotética em que o voto em branco se torna numa arma política para uma maioria da população descontente com o sistema de partidos que rege a democracia em que vivem. Depois, na explicação da sua própria obra literária, Saramago parece ter ido mais além e ter sugerido a validade dessa prática para além da ficção. Não vi declarações suas claras nesse sentido, mas também não as vi em sentido contrário. E qualquer modo, se sim ou não o escritor transformou uma obra de ficção numa proposta política real, é importante mas irrelevante para aquilo que em toda esta polémica me parece mais interessante: a maneira como o pensamento pode ser toldado por ideias preconcebidas.
A ideia de uma população descrente na política que maioritariamente vota em branco e assim cria um problema político de difícil solução é original e criativa. Original porque ninguém se tinha lembrado dela antes e criativa porque abre linhas de reflexão interessantes (se não mesmo de acção: e se de repente aumentasse significativamente a percentagem de votos em branco nas eleições europeias?). É uma ideia que levanta mais questões do que dá respostas e por isso tem todos os atributos de poder gerar à sua volta um interessante debate. Por isso, o pior que se lhe pode fazer é descartá-la em nome de ideias preconcebidas acerca do autor da proposta ou das suas supostas intenções ao fazê-la. A partir do momento em que é lançada, a ideia do voto em branco como arma política significativa pode e deve ser discutida por si mesma, independentemente do autor.
Houve pessoas que claramente minimizaram a ideia como um esoterismo de um conhecido comunista; outras entenderam-na como uma manobra de promoção de mais um best-seller; outras ainda como o devaneio de um intelectual pró-cubano. Como se o facto e ele ser comunista, o facto de haver um livro ou de Saramago ser pró-cubano fosse parte da ideia. Não é. A ideia subsiste por si e só não é espontaneamente gerada porque necessita de um intelecto para nascer. Mas uma vez nascida é propriedade de todos os intelectos que com ela se desejem ocupar.
E é desgostoso ver homens brilhantes na arte de exercitar o intelecto a deixarem as suas predisposições anti-Saramago, quaisquer que elas sejam, interporem-se no caminho entre eles e uma ideia tão potencialmente rica como esta. É sobretudo desgostoso para quem espera ansiosamente que eles se pronunciem. Eu senti esse tipo particular de desilusão a propósito de Pacheco Pereira e de Vasco Pulido Valente. Bem sei que ambos se posicionam bastante à direita de Saramago. Mas esperava que conseguissem pronunciar-se sobre a ideia em si sem se deixarem toldar pelas suas opiniões políticas ou literárias sobre Saramago, que o acaso fez autor da ideia. Como espectador atento, acho um desperdício dos seus intelectos. Um verdadeiro voto em branco...
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