A propósito da notícia de que as crianças sexualmente molestadas dos Açores tinham desistido das respectivas queixasa troco de dinheiro, preocupa-me que o responsável pelo organismo de ética da Ordem dos Advogados tenha dito na TSF que considerava essa solução aceitável, desde que fosse uma decisão informada e devidamente mediada por uma negociação entre os advogados. Obviamente, tal posição pretende antes de tudo, preservar a posição dos advogados, como convém a um representante de classe e isso nada tem de pernicioso. A haver uma negociação, ela deve ser informada e negociada pelos advogados. Nada mais natural, portanto.
Mas esta tomada de posição também tem subjacente, na minha opinião, uma visão do sistema de justiça com a qual eu não concordo. Não sou jurista, mas como cidadão parece-me que o conceito de indemnização faz sentido num processo cível, mas não faz o mesmo sentido, ou pelo menos não tem o mesmo valor, num processo criminal. Num processo cível repara-se um dano, num processo criminal pune-se um crime. Neste caso a indemnização é uma sanção apenas acessória e a sanção essencial é a punição do criminoso. E não interessa aqui se se trata de crimes públicos, semi-públicos ou privados. Isso só interessa do ponto de vista de quem pode acusar, não do ponto de vista de como o processo é resolvido.
Parece-me, e é isso que mais me preocupa, que a posição do referido dirigente da Ordem dos Advogados se inscreve numa tendência de aproximação da nossa maneira de operar a justiça à forma como isso é feito no sistema de justiça norte-americano. A justiça norte-americana é certamente a mais eficaz do mundo civilizado. Os processos são céleres, as negociações são abundantes e altamente profissionais, reservando espaço e tempo judicial para os casos que realmente dele necessitam. Mas, como europeu, o sistema de justiça norte-americano causa-me algumas reservas, basicamente porque leva os mecanismos que o tornam eficaz muito perto de atingirem os valores que sustentam os princípios do sistema de justiça. Ultrapassam-nos algumas vezes, mas sobretudo forçam-nos muitas vezes. Como europeu custa-me a aceitar. Uma solução como a proposta, que corresponde basicamente a um mecanismo de «pagar para calar», deixa sempre um travo amargo a injustiça, mesmo que seja para preservar um interesse público entendido como superior, o que no caso em concreto é aliás difícil de aceitar.
Num outro nível mas seguindo o mesmo raciocínio, a negociação que perdoa a um arguido alguns dos numerosos crimes que lhe são imputados para se poder acusar outros arguidos, se calhar menos «criminosos» mas mais poderosos ou colocados mais acima na escala hierárquica do crime, também belisca o mesmo princípio da justiça criminal. Todos percebemos que é muito mais eficaz assim, mas causa algum desconforto pensar que um indivíduo que é responsável por crimes graves seja aliviado da responsabilidade criminal pelos mesmos para condenar outros. Essa é uma situação injusta primeiro que tudo para as vítimas do primeiro criminoso, obviamente, mas que estende esse sentimento de injustiça a toda a comunidade.
Pode-se argumentar que essa negociação deve ser a excepção e não a regra. Mas uma vez aberto o precedente, ela tende inevitavelmente a tornar-se a regra e não a excepção, uma vez que os acusadores não resistem a uma meio tão expedido de alargar o número de acusações, o principal indicador da sua própria eficácia, mais do que as próprias condenações.
Pegando num exemplo prático, se estivéssemos nos EUA, um criminoso como Bibi decerto já teria feito uma negociação (como se anuncia que pode vir a fazer) permitindo ilibá-lo de algumas das penas que lhe seriam devidas por troca com a colaboração com a justiça na acusação a outros arguidos «mais importantes» mas provavelmente menos prevaricadores. Mas é por esse ser um recurso tão frequente nos EUA que ele se torna banal e se converte muitas vezes na primeira opção, o que, se é verdade que resolve os casos de uma forma mais simples e mais rápida, não é menos verdade que acaba por deixar impunes criminosos muitas vezes mais assustadores do que aqueles que permite apanhar. A justiça é mais eficiente porque reduz a impunidade mas é menos justa porque reduz penas a quem as merecia cumprir. E, afinal, a «justiça» deve ser o primeiro valor que o sistema deve preservar.
Decerto o representante da Ordem dos Advogados anteriormente aludido também defende uma negociação neste caso, e pelas mesmíssimas razões que o fez no primeiro. Mas se nos EUA isso não causa incómodo, acho que na Europa – e particularmente em Portugal no que se refere a Bibi e ao caso Casa Pia – uma solução desse género deixaria um travo amargo a injustiça. O que tem que ver com o facto de o apego aos valores e à sua preservação ser mais forte na Europa do que nos EUA. Há aqui matrizes culturais que nos distinguem, que devemos preservar e que devem enformar o modo como lidamos com a aplicação da justiça.
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