Vou explicar de que forma tomei conhecimento da primeira página do Correio da Manha de hoje. Estava a preparar-me para sair de casa pela manhã com a televisão sintonizada na SIC Notícias (alterno com a RTP). Eu não gosto de imagens violentas e sempre que posso evito-as activamente. Não em filmes ou ficções; essas não me incomodam; mas aquelas que sei serem verdadeiras são-me penosas e por isso normalmente olho para o lado, desvio o olhar quando passo por um acidente na estrada e mudo de canal quando a televisão embarca nesse tipo de notícias. Sou eu que sou assim, mas admito perfeitamente que nem toda a gente seja igual. Mas foi durante a revista de imprensa - uma das minhas rubricas favoritas no programa televisivo dessa manhã - que vi pela primeira vez - inadvertidamente, portanto - na primeira página do CM, a foto de um corpo separado da sua própria cabeça.
Faço esta pequena narração doméstica para enquadrar duas ou três reflexões sobre esta matéria. A primeira reflexão é relativa ao próprio CM, obviamente. Na primeira página referida a informação relativa ao atentado no Kremlin - ao qual a imagem se refere - é pouco mais do que discreta. Na verdade só depois de a procurarmos com algum cuidado encontramos a informação relativa à mesma. O que, claramente, significa que neste caso não é a imagem que sustenta a informação mas o inverso: aquela informação só esta lá para sustentar a imagem. Até porque a primeira página do CM é quase sempre ocupada por temas nacionais como a pedofilia, os impostos, o aumento de preços ou um ou outro crime, raramente com temas internacionais. Não sabemos mas podemos apostar que se não houvesse aquela imagem, a correspondente informação não teria merecido honras de primeira página no CM. E o que é que isso significa? Simplesmente que a função não é transmitir uma informação mas sim criar um efeito de choque em banca; ou seja, o objectivo não é dar uma notícia, mas sim vender jornais. Grande conclusão!! dirão. De facto a conclusão não é surpreendente. Mas se não é surpreendente, isso quer dizer que com ela concorda quem com ela não se surpreende. E então? Se todos concordamos com esta conclusão, o que é que acontece? Nada? Não acontece nada ao CM? Nada é dito ao jornalista que dirige o jornal? Um cidadão - como eu - que considere que foi ultrapassado um limite não dispõe de mecanismos para se defender?
É por estas e por outras que acho - como alguém defendeu em tempos, aparentemente sem sucesso - que os jornalistas deviam reger-se por uma Ordem. Uma Ordem capaz de vigiar e sancionar as más práticas jornalísticas da mesma forma que a Ordem dos Médicos sanciona as más práticas médicas ou a Ordem dos Advogados controla o desempenho em tribunal dos seus profissionais. Porque, sinceramente, não acho que a importância social dos jornalistas e - sobretudo - as consequências sociais das más práticas jornalísticas sejam menores que as outras. Pelo contrário. Quando todos falamos de banalização da violência nas sociedades ocidentais, é de primeiras páginas como esta que estamos a falar. Porque, para alguns milhares de portugueses, amanhã será um pouquinho mais banal ver uma cabeça separado do seu corpo. Eu, pela minha parte, gostaria - se me for permitido – de continuar a ficar incomodado com imagens como esta. E gostaria - se me deixarem - de continuar a evitá-las. Posso?
Esta questão entronca na segunda reflexão que gostaria de fazer a propósito da referida primeira página. Obviamente, eu não sou leitor habitual do CM. Não procuro o jornal em banca nem estou interessado em saber o que traz na primeira página em qualquer emissão televisiva. Mas em qualquer das duas situações eu posso ser confrontado com uma imagem de um corpo decepado sem que o queira ver ou sem que esteja preparado para o que o meu olhar vai encontrar, seja num jornal exposto em banca, seja numa emissão de televisão. Por isso pergunto: que direito tem um editor de expor assim uma imagem pela qual eu posso ser incomodado? Porque razão há-de o seu direito de expor a imagem ser superior ao meu direito de não ser exposto a ela? Não será o direito do CM em publicar imagens de corpos decepados mais prejudicial à sociedade do que o meu direito de não ser inadvertidamente confrontado com essas mesmas imagens? Se ela porventura estivesse dentro do jornal a questão não se colocaria. Se o jornal estivesse dentro do quiosque em vez de fora, a questão também não se colocaria. Se a revista de imprensa daquela manhã não tivesse incluído o CM, eu não estaria agora a indignar-me com o assunto.
O que me leva à terceira reflexão: será correcto que uma revista de imprensa de um canal noticioso, durante um programa de informação sério, dê relevância a uma manchete destas ou mesmo a qualquer das manchetes habituais de jornais como o CM ou o 24 Horas? Mesmo que, em nome do princípio da liberdade de imprensa, se responda que sim, devia uma estação de televisão responsável transmitir esta manchete? Se por hipótese absurda um jornal qualquer publicasse uma notícia qualquer ilustrada com a imagem clara e em grande plano de um órgão sexual, a estação de televisiva que faz revista de imprensa faria – e bem - uma da duas coisas: ou distorcia a imagem na zona do jornal que podia incomodar pessoas como eu; ou simplesmente não incluía a edição de hoje desse jornal na revista de imprensa, mesmo que amanhã tudo voltasse ao normal. Ou seja, o facto de ser o CM a publicar uma foto altamente criticável não isenta de críticas a estação de televisão que indirectamente reproduziu a mesma imagem como se não fosse nada com ela. Na verdade é com ela! Se a SIC não tivesse reproduzido aquela foto (imagino que a RTP o tenha feito também), eu não teria sido incomodado por ela e não estaria agora aqui a abordar o assunto. A banalização da violência resulta da reprodução da imagem violenta e não da sua autoria. E se o CM reproduziu aquela imagem violenta várias dezenas de milhar de vezes, a televisão fê-lo centenas de milhares de vezes.
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