quinta-feira, novembro 18, 2004

As crianças como uma medida do nosso desenvolvimento

As revelações acerca da Casa do Gaiato vêm juntar-se ao caso Casa Pia e convocam a pedofilia nos Açores e na Madeira, tanto quando casos como os de Joana ou a Catarina para nos fazer reflectir sobre o que realmente se está a passar em Portugal. Pode parecer que o nosso país se tornou de repente um antro de selvajaria a que nem as crianças escapam. Parece-me, no entanto, que o que se passa, realmente, é precisamente o contrário.
Na Casa Pia sabemos hoje que a violência sobre os menores prolongou-se durante anos e anos sem que se soubesse ou sem que quem o soubesse o denunciasse. Ou mesmo sem que, perante denúncia, alguém fosse condenado. Não espantaria que na Casa do Gaiato, viéssemos a descobrir uma teia semelhante, urdida no tempo e pelo tempo, contra as crianças e a favor dos adultos. Com sexo ou sem sexo.
Por outro lado, histórias “sofridas” como as de Joana ou Catarina fazem parte do registo não escrito de muitas vilas e terreolas por esse Portugal fora. Na maior parte das vezes as crianças são “apenas” abusadas, com maior ou menor violência, sem chegar à morte, mas chegando de certeza a deixar marcas para o resto da vida. Mais uma vez, sem que alguém tenha a coragem de denunciar ou condenar estes actos.
A diferença nos dias que correm é que finalmente começamos a ouvir falar de penas pesadas para esses casos. O facto de sucederem muitos em simultâneo ou num curto período de tempo não significa que existam mais que no passado; quer dizer apenas que finalmente se começam a descobrir e sancionar situações que antes passavam incólumes. E isso é uma medida do nosso progresso como comunidade.
A existência de situações de violência sobre as crianças, caladas mas não ignoradas, são um dos traços que resta do nosso subdesenvolvimento, traços esses de que, infelizmente, continuamos a ter notícia de muitos outros países agora menos desenvolvidos do que nós. São também, permita-se-me uma provocação política, resultado da salazarenta hipocrisia social que durante muitas décadas nos caracterizou como nação. Este é talvez um dos últimos atavismos do salazarismo (entendido não como projecto político mas como resultado social) de que definitivamente nos livramos.
Por isso, por cada Joana ou Catarina, por cada Casa Pia ou Casa do Gaiato que sejamos capazes de descobrir e judicialmente sancionar, não devemos ficar mais deprimidos, mas antes mais optimistas quanto ao nosso futuro como comunidade. É de progresso que se trata quando conseguimos limpar as nossas feridas.

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