Soares contra Cavaco é uma curiosa remake de combate político que decerto ainda vai fazer correr muita tinta. Mas, para já, duas ou três observações sobre o assunto:
1. Ao contrário do que ouvi num noticiário televisivo, imagino que Cavaco tenha sido de todo supreendido por esta solução de esquerda. Cavaco terá pensado em Guterres, em António Vitorino, talvez mesmo em Freitas ou Manuel Alegre, mas nunca em Mário Soares. E é isso que explica algum nervosismo visível no PSD e na direita (ao ponto, não inédito, de, como nota Paulo Gorjão na Bloguítica, Pacheco Pereira ter deixado o político sobrepor-se ao analista, aqui). Afinal esta eleição não será um passeio e, em parte por causa da sua incoerência, Soares introduz um elemento de imprevisibilidade no resultado de uma eleição que parecia decidida (com ou sem Guterres). E a eleição é imprevisível porque Soares é um jongleur político capaz de, com o seu ar bonacheirão (que como sabemos dá votos), dizer hoje o oposto do que disse ontem sem que isso o prejudique nas urnas (algo que Pacheco Pereira parece ter esquecido aqui, outra vez). Cavaco não se pode dar a esse luxo.
Temos portanto dois homens com perfis bastante diferentes: Soares tem perfil de Presidente, Cavaco tem perfil de primeiro-ministro. Contra um adversário fraco isso nem se notaria, mas, contra Soares, essa diferença significa que Soares pode ganhar.
Para além disso, Soares e Cavaco já se confrontaram politicamente (embora não nas urnas) no segundo mandato presidencial do primeiro. E Soares ganhou! Saiu por cima e Cavaco saiu por baixo.
2. Há duas razões que podem ter levado Soares a aceitar ser candidato, para além, obviamente, do gosto pessoal pela disputa política: o facto de a eleição se estar a tornar num plebiscito a Cavaco Silva; e o mundo de possibilidades aberto pelo precedente presidencialista criado por Sampaio. Soares digeriria mal um plebiscito presidencial qualquer que fosse o candidato de direita, mas digere-o muito mal se esse candidato for Cavaco Silva. Se tivesse havido outro candidato de esquerda, Soares não avançaria, mas, à falta dele, o velho político não resistiu ao desafio de voltar a enfrentar Cavaco (o que, concordo com o Nestes Tempos, é manifestamente pouco).
Por outro lado, embora soe a conspiração, é verdade que o precedente aberto por Sampaio quando demitiu um governo maioritário na assembleia pode ter apelado ao desejo de protagonismo de Soares (mas também de Cavaco, convém não esquecer, como muito bem refere Martim Avillez Figueiredo no Diário Económico). Sobretudo num quadro de ingovernabilidade do sistema político (não em termos de maiorias, mas em termos de "peso" político para impor reformas, como, também bem, referiu Lobo Xavier na Quadratura do Círculo), que, arrisco-o, vai ser um dos temas de fundo desta eleição presidencial. Saberemos se esta questão é ou não especulativa quando ouvirmos os dois candidatos sobre o seu entendimento das funções presidenciais. O que ainda não aconteceu.
3. Pelo seu perfil, é inevitável que Cavaco proponha uma agenda económica própria se chegar à Presidência. Se Sócrates lhe resistir vai ter um confronto político sério (e aberto) pela frente. Pelo seu perfil, se Soares chegar à Presidência, vai ter uma agenda política própria. Se Sócrates lhe resistir vai ter um conflito sério (mas sub-reptício) pela frente. Em qualquer dos casos Sócrates fica a perder porque qualquer das soluções lhe cria mais problemas do que o "manso" Sampaio lhe criava.
4. É claro que a questão da idade de Soares não tem qualquer relevância institucional. Mas tem relevância política. Nada sobre isso está inscrito na Constituição e é abusivo interpretar algo do facto de existir uma imposição de idade para aceder ao cargo. Mas não é irrelevante a idade de uma pessoa no momento de ascender a um cargo para cinco anos (com mais cinco de opção). Não é irrelevante para os eleitores e portanto não é irrelevante do ponto de vista político. Mas será curioso ver se alguém terá coragem de puxar esse tema na campanha eleitoral, nomeadamente Cavaco, como é óbvio.
5. Dependendo da personalidade de quem ocupe o cargo, o segundo mandato presidencial é sempre mais "irresponsável" que o primeiro. Não existe a pressão de voltar a sufragar nas urnas o desempenho no cargo e a carreira política quase sempre acaba (ou começa a acabar) depois disso. Com dois mandatos presidenciais extremamente bem sucedidos (recordem-se os níveis de popularidade atingidos), um estatuto de figura tutelar da democracia portuguesa e uma idade que garante que esta será, de facto, a última coisa que faz na vida, Soares será ainda mais "irresponsável" do que qualquer "irresponsável" antes dele e estará em absoluto em rédea livre se porventura for eleito. Se recordarmos o que foi o seu segundo mandato com Cavaco, podemos imaginar o que será agora se for eleito. Com Sócrates ou com outro.
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