É curioso o frenesim que se levantou a propósito as declarações de Morais Sarmento sobre os limites à independência do serviço público de televisão. O ministro emitiu a opinião de que competia ao governo definir o modelo de programação da televisão pública e que devia haver limites à independência dos operadores públicos na execução desse modelo de programação (sobretudo como forma de acautelar a respectiva gestão financeira). Mas a ideia que passou para a opinião pública – e foi literalmente afirmada nalguns meios de comunicação - foi de que o ministro tinha dito que ao governo competia definir a programação (nalguns casos falou-se mesmo na grelha de programas) e que devia haver limites à independência da informação (ou seja, dos jornalistas). E isso são coisas bem diferentes.
Admito que o governo tenha intenções não ainda claramente explícitas acerca da televisão e que as suas posições sobre esta matéria nesta altura possam servir esses fins. Mas também me parece que poucos governos terão apanhado na sua posse um “estado de desgraça” como este, em que qualquer declaração de um ministro, por menos inepta que seja (e têm-no sido muito muitas vezes), gera uma vaga de notícias e comentários críticos de que não há memória e que, na sua sequência quase “orquestrada” geram o sentimento público de que o governo está à beira do abismo. Esta semana tem sido exemplificativa disso mesmo: dos problemas da educação ao ministro Gomes da Silva, passando por Morais Sarmento, pela sesta do PM ou pelas suas declarações na Alemanha, para já não falar no “ameaço” anti-Portas relacionado com as operações de salvamento em Aveiro (outros exemplos haverá), o Governo parece perfeitamente descoordenado e incapaz de uma acção política eficaz e coerente. Provavelmente está-o e é-o de facto, mas a verdade é que, como o exemplo inicial demonstra, se torna difícil distinguir onde termina a inépcia do governo e começa a sua “má imprensa”. Provavelmente uma estimula a outra.
O que o ministro Sarmento de facto disse é menos grave do que aquilo que lhe foi atribuído, mas não deixa de fazer alguma confusão entre política e administração. Ao governo compete definir as linhas gerais do serviço público de televisão (incluindo as suas linhas financeiras) e nomear uma administração que ponha essas políticas em prática. À administração compete, com independência, e mediante os seus directores respectivos, tomar as decisões de programação e informação atinentes a esse fim. Não comete ao governo decidir se a RTP deve ou não transmitir jogos de futebol no horário nobre, mas compete-lhe definir (ou participar na definição) de se o futebol faz parte da noção de serviço público, assim como de quanto deve custar esse serviço público. Isto está muito perto do que o ministro disse e não merece crítica: merece reflexão.
Claro que todos conhecemos a tentação dos sucessivos governos em instrumentalizar a televisão pública aos seus interesses políticos e é por isso que o serviço público está – correctamente - estipulado em lei. Mas esse facto torna a televisão pública uma excepção positiva, e não negativa, no quadro dos meios de comunicação social em Portugal e isso parece ter esquecido pela maior parte dos comentadores. Ou seja, informalmente tudo é discutível, mas, do ponto de vista formal, a RTP está hoje mais protegida contra ingerências superiores na sua informação do que a SIC ou a TVI. Evidentemente que Miguel Pais do Amaral interfere directa ou indirectamente (através do director respectivo) na programação na estação (decide se a Quinta das Celebridades deve ir para o ar e a que horas). E, como se viu, pode não resistir à tentação de influenciar também a informação da estação, tendo como únicas salvaguardas da Lei da Televisão e da Lei de Imprensa.
No que se refere a interferências na informação, obviamente, elas dependem da Lei de Imprensa e da capacidade das redacções para zelarem pela sua aplicação: temos ouvido mais vezes posições acutilantes da redacção do Público do que da redacção do DN e facilmente especulamos que uma nomeação como as recentes do grupo Lusomundo não seriam pacíficas no Público e pressões como as de Pais do Amaral seriam inaceitáveis.
Mas, mais do que isso, porque razão aceitamos como normal que a administração de uma televisão privada determine as linhas mestras da sua programação e não aceitamos que o governo o faça em relação à televisão pública? É verdade que, como diz Morais Sarmento, é o Governo que responde perante os eleitores, tal como o conselho de administração da TVI responde perante os accionistas. Então porque razão há-de o governo ser coarctado na sua acção nesta matéria por mais limitações do que uma entidade privada correspondente? Acaso achamos que o governo não é uma pessoa de bem e necessariamente actuará de má-fé se for deixado em rédea livre? Ou, pelo contrário, achamos que os accionistas da TVI são pessoas de bem cuja actuação se pautará pela mais estrita ética e legalidade mesmo que ninguém esteja a olhar? Ou seja, a questão não está em eliminar as limitações que como comunidade achamos que devem existir para a acção de um governo sobre a televisão pública. Mas, se, como comunidade, acharmos que tais limitações se justificam, a questão está em estendê-las a todas as entidades que prestam serviço de televisão. A Galp tem que respeitar as mesmas regras que a Shell, não tem que respeitar mais.
A consequência lógica é, como muito bem diz Pacheco Pereira, que não haja televisão pública. Mas o que eu pergunto é: não havendo televisão pública acaso diminuirão as interferências superiores, económicas ou políticas, sobre a programação e informação das televisões privadas? Claro que não! Por isso é que devem existir, em todos os meios de comunicação, redacções fortes capazes de defender a independência da informação, por isso é que deve existir um serviço público de televisão capaz de manter os standards da emissão e por isso é que deve existir uma entidade reguladora efectiva e poderosa capaz de aplicar as mesmas regras a tudo o que seja igual.O que não faz sentido é que sejamos mais exigentes com uma entidade pública que é escrutinada pelo voto do que somos com uma entidade privada escrutinada apenas pelos seus accionistas. Não podemos dizer que a primeira questão nos diz respeito e a segunda não. A importância que a televisão tem hoje em dia numa sociedade faz com que essa questão nos diga respeito a todos. Morais Sarmento gostaria certamente de ter junto da RTP o à-vontade que Pais do Amaral tem na TVI, mas, pelo contrário, o que devemos é, salvaguardadas as devidas distâncias entre uma televisão serviço público e outra de serviço privado, colocar a Pais do Amaral o mesmo grau de exigência que considerarmos necessário para Morais Sarmento. E isso, obviamente, deve ser feito por uma autoridade reguladora que comece por fazer cumprir a lei da televisão…
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