“Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira. Certa manhã, ao deixar o metro por engano numa estação azul igual à dela, com um nome semelhante à estação da casa dela, telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase. Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a professora me pediu para repetir a sentença. (…)”
“Kriska se despiu inesperadamente, e eu nunca tinha visto corpo tão branco em minha vida. Era tão branca toda sua pele que eu não saberia como pegá-la, onde instalar as minhas mãos. Branca, branca, branca, eu dizia, bela, bela, bela, era pobre meu vocabulário. (…)”
“(…) E assim permanecemos outra meia-hora, ela dentro de si e eu imerso no silêncio dela, tentando ler seus pensamentos depressa, antes que virassem palavras húngaras. (…)”
“Além de expostos de longo a longo na vitrine, havia uma pilha deles no balcão. As pessoas entravam, passavam a mão num exemplar e se acertavam no caixa, quando não iam directamente ao caixa como quem compra cigarros: me vê um Ginógrafo. Outros se chegavam, davam uma olhada nas estantes, apuravam o preço dos importados, bordejavam a bancada com os lançamentos recentes, acabavam topando a pilha sobre o balcão; está saindo à Beça, dizia o livreiro, ou, até ao Natal bate os cem mil, e essa espécie de recomendação era tiro e queda, mais um Ginógrafo embrulhado para presente. Postado no centro da pequena livraria, num pedaço de tarde perdi a conta dos fregueses que saíram com meu livro. Passavam por mim sem me olhar, esbarravam em mim sem imaginar quem eu fosse, e aquilo me enchia de uma vaidade que havia muito tempo eu não sentia. (…)”
“(..) Enquanto isso, o canalha escrevia o livro. Falsificava meu vocabulário, meus pensamentos e devaneios, o canalha inventava meu romance autobiográfico. E a exemplo da minha caligrafia forjada em seu manuscrito, a história por ele imaginada, de tão semelhante à minha, às vezes me parecia mais autêntica do que se eu próprio a tivesse escrito. Era como se ele tivesse imprimido cores num filme que eu recordava em preto-e-branco, oh, Kósta, essa festa de Ano-Novo, essa canção do Egito, esse alemão sem pelos, eu não suportava mais escutar aquilo. E uma noite, na cama, saltei sobre Kriska, atirei longe o livro, segurei-a pelos cabelos e assim quedei, arfante. O autor do meu livro não sou eu, queria lhe dizer, mas a voz não me saía da boca, e quando saiu foi só para falar: é só a ti que tenho.”
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