Para quem achava que o sistema político e partidário português já era suficientemente maduro e epifenómenos como o PRD já não eram possíveis, eis como um ciclone chamado Santana baralha tudo de novo.
Há apenas alguns meses atrás, com a maioria de coligação de Durão Barroso e a situação económica já então não pior do que está hoje, ninguém ousaria prever a absolutamente ilógica viragem à esquerda que ocorreu nestas eleições. Tão desmesurada que chega para nos pôr a pensar se será apenas ou sobretudo o voto punitivo a explicá-la.
Os resultados eleitorais vão certamente (e merecem-no sobremaneira), merecer múltiplas análises por parte dos especialistas, as quais serão naturalmente aguardadas com científica expectativa. Mas duas ou três observações parecem suficientemente claras para serem arriscadas:
1. O PPD/PSD perdeu para os socialistas provavelmente todo o centro político que tinha votado no partido em 2002. Senão todo, 90 por cento dele. Em grande parte, retomando o raciocínio dualista PPD versus PSD, provavelmente é correcto dizer que todo o eleitorado PSD votou no PS nestas eleições. Só assim se explica que, crescendo o PS até um score que manifestamente não estava ao seu alcance em nenhuma conjectura pré-eleitoral, mesmo assim todas as esquerdas tenham aumentado a votação. Só isso explica que o PCP não tenha continuado o seu caminho em direcção ao definhamento e que o Bloco tenha exponenciado a sua votação. Trata-se de um momento histórico para a esquerda, que, à falta de melhor explicação (pelo menos por enquanto) dá bem a dimensão do “fenómeno” Santana.
2. A maior parte dos votantes que o PP perdeu devem ter ido para o PSD, por paradoxal que isso possa parecer. Em primeiro lugar porque não parecem transparecer na votação dos sociais-democratas; em segundo lugar porque o PP fez uma boa campanha e pensou que o esvaziamento do PSD lhe ia dar votos à direita. Aconteceu precisamente o contrário pela simples razão de que Portas esqueceu o efeito de desilusão que sempre acompanha um partido de extremos anti-sistema quando se integra no sistema. Quando a coisa corre bem, até consegue alguns votos e vários lugares políticos para distribuir pelos seus acólitos. Mas quando a coisa corre mal, pode também ser castigado, como foi caso. E o PP foi castigado porque não pôde, por fidelidade à coligação (e ainda mais com um acordo que Portas assinou por não prever uma maioria absoluta PS), usar todos os argumentos que, hoje, em Portugal, estariam ao alcance de um pequeno partido de direita não comprometido. A Europa é o melhor exemplo.
3. Para o Bloco de Esquerda, o esvaziamento do PSD e a deslocação do PS para a direita eleitoral (ganhou milhares de votos à direita mas também perdeu bastantes à esquerda) caíram do céu: o processo de crescimento gradual deu de repente um solavanco e o BE transformou-se num partido a ter em conta em qualquer xadrez eleitoral. Para o BE nada será como dantes e o património de votos recolhidos nestas eleições pode revelar-se extremamente valioso, basicamente porque os votos dos extremos são menos volúveis do que os do centro.
4. Olhando para o quadro eleitoral dos concelhos, nota-se que o PCP perdeu três no Alentejo (já não é o partido mais votado), mas ganhou votos um pouco por todo o país, sobretudo no norte. Ou seja, diluiu uma das desvantagens da sua demografia eleitoral: a concentração regional, que, se por um lado se convertia mais facilmente em mandatos de Hondt, por outro lado limitava a notoriedade do partido a nível nacional (para usar um termo técnico de marketing) e a sua elegibilidade perante um leque muito mais vasto de eleitores.
Ou seja, as transferência de votos do PP para o PSD, do PSD para o PS, do PS para o BE, do PS para o PCP e da abstenção para todos os partidos de esquerda recompuseram, em grande parte, o quadro eleitoral nacional. As consequências imediatas são aquelas que resultaram na noite eleitoral, mas as consequências a médio prazo estão ainda por determinar. Sendo certo, no entanto, que, se é surpreendente uma tão grande movimentação de votos numa só eleição, seria ainda mais supreendente outra ou outras movimentações semelhantes nos tempos mais próximos. O que quer dizer que, onde quer que estejam hoje, muitos desses votos podem ter vindo para ficar durante algum tempo, mudando de uma forma estável a paisagem eleitoral. Mais um resultado a crédito de Santana Lopes, o coveiro da direita em Portugal.
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