1. Álvaro Cunhal foi um derrotado político. Acabou amargurado, mas conseguiu sempre escondê-lo razoavelmente. Porque acreditou sempre nos ideais, mesmo contra as evidências da história, que não duvido que Cunhal conhecia e reconhecia. E a verdade é que os ideais valem, mesmo contra as evidências. Quanta da social-democracia nórdica foi buscar aquilo que hoje é às influências teóricas do comunismo? As ideias e os ideais perduram para além do que os homens decidem fazer com eles. São como condimentos que usamos para os nossos cozinhados políticos. Não tenho dúvidas que o comunismo, derrotado em toda a linha como materialização histórica desses ideais, perdurou e perdura em muitos regimes e muitos estados, também eles materializações históricas, como um elemento de construções políticas mais complexas. Cunhal sabia-o e creio (creio, sublinho) que lutou sempre pelos ideais, nunca pela sua materialização histórica desligada deles. Ou seja, Cunhal pactuou com regimes hediondos e fechou os olhos à evolução da história, mas fê-lo em nome dos ideais, nunca em nome dos benefícios que ele ou os seus seguidores podiam retirar da materialização histórica do comunismo. É injusto acusá-lo do contrário.
2. Álvaro Cunhal moldou a luta contra a ditadura. A sua acção individual foi importante, mas mais importante ainda foi o exemplo de estoicismo e perseverança que deu a muitos comunistas anónimos que em muitos casos terão continuado a lutar - não o duvido - porque o seu exemplo estava sempre presente e era fortíssimo. E não duvido também que foram muitos dos esforços desses comunistas anónimos (de base, como agora se diz), que alimentaram a chama da resistência, por exemplo em muitos estudantes e alguns milicianos. E isso é um crédito devido à liderança de Cunhal no tempo da ditadura salazarista.
3. Álvaro Cunhal moldou a luta pela democracia depois do 25 de Abril. Ele lutou sempre contra a democracia parlamentar (ou burguesa, como se dizia dantes), mas - afirmou-o sempre - lutando por um outro tipo de democracia, mais real, menos mascarada, numa palavra, mais directa. É irónico que muitas das críticas que hoje se fazem ao nosso sistema parlamentar (distância entre eleitores e eleitos; alternância sem alternativa, clientelismo sem serviço público) sejam precisamente algumas das que Cunhal apontou. O rumo que Soares queria para o país em 74-75 foi a tese face à qual o rumo pretendido por Cunhal foi a antítese. A síntese é o resultado de ambos. Como seria a nossa democracia sem as resistências de Cunhal ao rumo que ela acabou por tomar? Pior? Talvez. Mas a verdade é que a resposta não pode deixar de ser especulativa. O que sabemos com certeza, isso sim, é que aquilo que hoje somos, em parte a Cunhal o devemos (para o bem e para o mal).
4. Álvaro Cunhal foi um homem fiel aos seus princípios. É verdade que em muitos lugares do mundo esses princípios geraram regimes ignóbeis e é também verdade que a coerência não é si mesma uma virtude. Mas, pautar uma vida inteira pelos mesmos sólidos princípios e fazê-los vingar em todos os aspectos da vida pública e pessoal, é em si mesmo admirável. É nisso que Cunhal e Salazar são parecidos (sim, também em Salazar isso foi admirável). Cunhal nunca deixou de pautar a sua conduta por aquilo em que acreditava e nunca cedeu à tentação de tirar benefícios pessoais da sua acção pública (a forma como resistiu a desvendar Manuel Tiago quando já toda a gente sabia quem ele era é sintomático). Ou seja, Cunhal fez aquilo que nós, comuns pecadores (existe alguma coisa de religioso em Cunhal…) não conseguimos fazer. A maior parte das pessoas de esquerda admira-o por isso, entre outras coisas. Uma boa parte das pessoas de direita admiram-nos por isso, mesmo que o critiquem em tudo o resto. Esta lógica é profundamente apologética, mas estou convencido que é ela que explica a transversalidade direita-esquerda (com as naturais matizes) do elogio à “coerência” e aos “princípios” de Cunhal.
5. Álvaro Cunhal, Salazar e Soares são, na minha opinião, as três figuras políticas mais importantes do século XX em Portugal. Sá Carneiro também o seria certamente se não tivesse morrido e Cavaco está um patamar acima dos restantes mas ainda um degrau abaixo destes. Mesmo assim, tantos anos depois, a hierarquia de importância seria, penso eu, Salazar, Soares, Cunhal. A personalidade colectiva do povo português e a forma como nos organizamos e funcionamos como comunidade é ainda hoje grandemente influenciada pelo salazarismo (e portanto por Salazar; não houve regime mais personalista). Soares, por seu lado, lutou contra o salazarismo (Cavaco ainda mais) e derrotou Cunhal, moldando nessas lutas simultâneas muito do que é hoje o nosso país. Cunhal, por fim, foi derrotado cá dentro e lá fora e assistiu ao definhamento do seu partido. Não conquistou nada de verdadeiramente relevante, mas ainda assim ninguém lhe nega um lugar entre as figuras relevantes da história recente de Portugal. E isso dá bem a dimensão da sua estatura enquanto figura histórica. Porque a história não é um jogo de futebol e não reza só dos vencedores. Também reza dos vencidos. Porque na complexidade do mundo, aquilo que deixamos é sempre em parte obra nossa.
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