quinta-feira, junho 02, 2005

Os fundamentos do "sim"

Os diferentes caminhos e diferentes resultados dos processos de ratificação do projecto de constituição europeia nos diversos países demonstram um total divórcio entre as elites políticas e a população. Qualquer que seja o país dos 25 que tomemos em análise, a classe política é sempre mais favorável (quase sempre maioritariamente favorável) à aprovação da constituição do que a respectiva população. E qualquer que seja o país para que olhemos, a população é sempre mais resistente (em vários casos maioritariamente) do que a sua classe política.

Normalmente infere-se daqui que a população está certa e a classe política está errada. Mas não é necessariamente assim. É verdade que a Europa tem sido construída com um défice democrático que só podia dar este resultado. É verdade que a Europa tem sido demasiado tecnocrática e insuficientemente política e social. Nisso toda gente parece de acordo. Mas o facto de ter havido erros pelo caminho não obriga a que mudemos o caminho; obriga apenas a que não cometamos os mesmos erros no futuro. Ou seja: a ideia subjacente à construção de uma unidade europeia permanece válida e é em nome dessa ideia que a classe política europeia responde “sim”. Ou seja, ainda, a classe política responde “sim” porque é capaz de um raciocínio político de médio e longo prazo e em nome dele supera as limitações do presente e os erros do passado (de que estou convencido que, no seu todo, estará consciente). A população responde "não" porque é incapaz de ver para além do presente e do passado e naturalmente não gosta daquilo que vê.

O que nos leva para a questão da eficácia da democracia. A democracia é o melhor dos sistemas, mas não é perfeita. A democracia é um valor intrínseco das sociedades ocidentais e não pode ser posta em causa. Mas ela não é um fim em si mesma. É o melhor dos mecanismos conhecidos para que as decisões colectivas sejam as mais correctas segundo a maior parte dos seus membros. É o melhor instrumento conhecido para realizar a felicidade colectiva, mas é apenas um instrumento para este fim.

Para além disso, a função das elites políticas não é apenas interpretar democraticamente a vontade colectiva (expressa em eleições ou referendos) e dirigir os países em função disso; é também propor, de uma forma voluntarista, caminhos que não estão imediatamente à vista. Felizmente a Europa vive hoje em democracia, o mundo é hoje mais democrático do que alguma vez foi, mas a verdade é que ao longo da história muitas decisões importantes para a evolução das sociedades foram tomadas sem consulta popular e por voluntarismo da elites políticas. Percorremos um longo caminho até chegar aqui e esse caminho não foi sempre democrático. Aliás, não custa conceber que em muitos momentos e locais da história, o ideal democrático só subsistiu e vingou porque as elites políticas por ele lutaram.

Hoje, no conforto democrático das modernas sociedades ocidentais e europeias, tendemos a esquecer que há vida para além das eleições e referendos. Num mundo económica e politicamente globalizado, a integração europeia é um dos poucos (senão o único) caminho que permite aos estados europeus manter alguma rédea nos seus destinos. Mas isso não é imediatamente perceptível. Por isso é que o ideal europeu, refundado ou não, deve continuar deve continuar para além da presente crise.

Como facilmente se percebe, tanto em França como na Holanda e tanto em Portugal como na Espanha (só para dar exemplos com resultado diferentes), o "não" congrega um conjunto de motivações que não têm directamente que ver com o projecto de constituição ou sequer com o processo de integração europeia. Isso é "normal" numa consulta popular (sobretudo quando está em causa algo tão complexo), mas, sendo "normal", não deixa de ser "imperfeito". Perfeito seria que a população conseguisse motivar o seu voto, qualquer que ele fosse, apenas pelo que realmente está em causa.

É por isso que existe uma função de mediação na representação política. Não é praticável perguntar à população sempre que é preciso tomar uma decisão nem é certo que a população tome sempre a decisão certa. Por isso é que existe uma classe política eleita que é mandatada para tomar decisões em nome da população. Por uma razão prática, mas também por uma razão de racionalização do processo político. E é por isso que países insuspeitamente democráticos, como a actual Alemanha, não têm sequer a figura do referendo; é porque os seus eleitos políticos são mandatados também para decidir nesta matéria, que, aliás, se o sistema político tiver funcionado correctamente, terá sido discutida e esclarecida em campanha eleitoral.

Significa isto que, em vez de um referendo, deviam ser os políticos portugueses a decidir esta matéria? Claro que não! Não existe questão mais "referendável" do que esta, na qual, obviamente, está em causa a soberania nacional. Não só acharia inaceitável a não realização de um referendo, como estaria certamente a exigir um se fosse cidadão alemão. Mas acredito na ideia europeia e estou convencido que o caminho é para a frente e não para trás. Dar passos no sentido da partilha de soberania requer coragem porque oferece muitos riscos e poucas garantias, sobretudo tendo por referência o que tem sido a Europa nos últimos anos. Por isso é a opção mais difícil. E por isso a classe política entende-a melhor que a população. O "não" multiplicado pode parar a Europa; o "sim" permite continuar um processo no qual todos somos afinal agentes.

É por isso que me parece sintomático que o único dos três referendos já realizados a eleger o "sim" tenha ocorrido em Espanha. Não existe na Europa país mais cioso da sua "nacionalidade" do que Espanha. Mas também não existe na Europa país mais experimentado na convivência entre "nacionalidades" diferentes e até rivais do que Espanha. Ou seja, Espanha é talvez o único país Europeu para o qual a ideia de uma federação (mesmo que sem uma federação de facto) não é uma coisa nova. Para todos os restantes países europeus isso é uma coisa nova. E as coisas novas naturalmente assustam. Mas, no processo de construção de uma identidade europeia, o actual "não", tanto quanto os erros de política europeia que em boa parte lhe deram origem, não é mais do que uma crise de adolescência. Que naturalmente tem que ser ultrapassada para se chegar à idade adulta.

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