quinta-feira, junho 30, 2005

Ética e política

A polémica que se gerou no Reino Unido a propósito da criação de um Bilhete de Identidade nacional serve de exemplo para relativizar a discussão das matérias políticas. Todas as matérias políticas. Para um britânico dificilmente existirá uma matéria mais eminentemente política do que esta, pelas questões que levanta em termos de liberdades cívicas. Aliás, se os britânicos fossem portugueses decerto já estariam a pedir um referendo sobre a matéria. No entanto, para os portugueses, semelhante discussão parece no mínimo esotérica e no máximo inócua. Qualquer um de nós concorda que há matérias mais importantes para debater e questões mais substancias para separar politicamente as pessoas.
Ou seja: em qualquer comunidade social politicamente organizada (e não as há não politicamente organizadas) as matérias de debate político, ao contrário da moral, são relativas. A moral não tem quaquer relativismo; move-se no âmbito da filosofia e portanto é semelhante em qualquer homem que possua um intelecto. Mas, embora seja uma das fontes da nossa organização política (uma das principais), a moral não pode ser confundida com ela. A forma como nos organizamos politicamente é alimentada pelos valores éticos que partilhamos e tende para um estado de respeito absoluto pelos mesmos. Mas, por mais que concordemos nos valores éticos, iremos sempre discordar na forma de os manifestar politicamente (na forma como fazemos as nossas instituições políticas respeitá-los e na forma como pomos a nossa acção colectiva ao seu serviço).
Os valores éticos de um britânico não são diferentes dos de um português (pelo menos se ambos os definirem segundo a "moral vazia" de Kant). Mas a forma de os materializar politicamente em leis é bastante diversa. Concretizando: ambos partilham a o valor ético de que o Estado não deve subjugar o indivíduo. Mas para um português a existência de um cartão de identidade não ameaça isso e para um britânico sim. É por isso que a questão não se coloca em Portugal e é profundamente polémica no Reino Unido.
Claro que esta distinção entre valores éticos e organização política se pode aplicar a praticamente todas as linhas de discussão no seio de uma comunidade organizada, justamente porque a ética está sempre a enformar a política e a política está sempre a tender para a ética. Um exemplo: a questão do aborto. Qualquer espírito racional adopta como valor ético o respeito pela vida humana. Mas a forma de pôr em lei esse valor no caso de uma mulher grávida depende do nosso entendimento do que é "vida humana" e isso é politicamente determinado. Ou seja, são os princípios políticos pelos quais cada um de nós se norteia que determinam a nossa posição nesta matéria. Daí a polémica (que curiosamente quase não existe no Reino Unido) e daí o referendo.

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